Preciso defender a crase. Passei a vida inteira ouvindo impropérios a respeito dela, mas chegou a hora de falar. Pronto, cansei (gente, pareço uma louca!). Pra começar, crase não é aquele sinal gráfico que muitos insistem em odiar. Não! A crase é o nome de um fenômeno em que ocorre a junção da preposição “a” com o artigo “a”. E, para não escrevermos “aa”, usamos o acento grave, que indica a existência dessa maravilhosa fusão. Hummm... E daí, Cíntia Chagas?
E daí que a crase é capaz de tirar, de incontáveis apuros, quaisquer falantes da nossa inculta e bela língua. Quer ver? O significado de 'Os manifestantes queriam depor a delegada' seria completamente diferente se houvesse crase: os manifestantes queriam depor à delegada. Se você não entendeu a diferença, coloque o problema em você, não na crase, ora bolas. No primeiro exemplo, a delegada correria o risco de perder o próprio cargo; no segundo, ela seria a ouvinte do depoimento. Entendeu?
Exemplos da utilidade desse estupendo fenômeno não faltam... Matar a fome não seria exatamente o oposto de matar à fome? No primeiro caso, eu dou de comer; no segundo, eu deixo sem comer. E se digo que a menor de idade cheira a gasolina? Estou falando de uma usuária de tóxicos, não estou? Mas, se digo que a menor de idade cheira à gasolina, refiro-me apenas ao odor da jovem. Tudo se modifica! Convenhamos, a crase é, no mínimo, interessante.
Quando faço enquetes sobre o que mais leva os meus alunos virtuais aos meus cursos de gramática, o resultado é sempre o mesmo, do Norte ao Sul do país: a crase. Famigerada, temida, criticada, ela é um conhecimento mais do que necessário. Como diria o poeta Ferreira Gullar, a crase não foi feita para humilhar ninguém. E não foi mesmo. As pessoas é que se tornam, pela falta de empenho, alvos de humilhações, ainda que não ditas. Ou sentem-se humilhadas por desconhecerem determinadas regras da norma culta. E depois colocam, à revelia, a culpa na inocente e salvadora crase. Uma humilhação às avessas. Ou seria as avessas?