(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas O BRASILEIRO MÉDIO E A VIOLÊNCIA

O homem cordial e a celebração do extermínio de seus concidadãos

O cidadão comum, descrito por Sérgio Buarque de Holanda, celebra o extermino dos seus congêneres. Ele não quer justiça no caso da chacina de Jacarezinho


13/05/2021 06:00 - atualizado 02/06/2021 18:10

Vários protestos contra violência policial ocorrem no Rio de Janeiro depois do massacre em Jacarezinho(foto: Carl de Souza/AFP)
Vários protestos contra violência policial ocorrem no Rio de Janeiro depois do massacre em Jacarezinho (foto: Carl de Souza/AFP)

Sérgio Buarque de Holanda, um dos maiores e mais influentes intelectuais brasileiros do século XX, popularizou, em Raízes do Brasil, livro publicado originalmente em 1936, a expressão “homem cordial”, para definir as características do brasileiro médio. Ele afirma que “a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’.

A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”.  

Pode parecer, em princípio, que Sérgio Buarque de Holanda interpreta, por meio da metáfora do homem cordial, o caráter do brasileiro médio através de uma lente otimista. Muito pelo contrário, já que logo em seguida ele nos adverte que “seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças”. 

Holanda quer nos fazer entender que a cordialidade, que vem de coração, faz com que misturemos o público e o privado, tratando, frequentemente, aquele como se fosse este. Ademais, a cordialidade por ter como base o transbordamento das emoções, pode ser extremamente violenta e transformar em coisa íntima aquilo que é de todos.

É possível verificar a ubiquidade dessa conversão do público em privado, do racional em emocional, em uma infinidade de hábitos comuns dos brasileiros, independentemente da classe social ou origem geográfica.

Ela está presente no “agrado” que se oferece ao policial para evitar ser multado, no hábito de parar em fila dupla ao deixar os filhos na escola, ao contratar empregadas domésticas informalmente para fugir de suas responsabilidades fiscais, ao sonegar impostos, ao tratar discricionariamente aqueles que não nos são próximos, tudo em profunda consonante com a máxima maquiavelista: “aos amigos os favores, aos inimigos a lei”.

A cordialidade emotiva transbordante desnuda não apenas o cidadão comum mas desvela, sobretudo, as formas de governar e a privatização dos negócios do Estado, Afinal, alguém provavelmente já deve ter dito que não há governo virtuoso na ausência de uma sociedade civil igualmente virtuosa.

O governo é, afinal, um grande espelho que reflete e amplifica as qualidades e defeitos de seu povo. E, no Brasil, os governos têm sido marcados, amiúde, pela corrupção explícita, personalismo, casuísmo, clientelismo, nepotismo e, em situações extremas como a que estamos vivendo no governo Bolsonaro, completa falta de direção e ódio explicito ao povo que governa. 

Apenas para fazer um contraponto, gostaria de lembrar que o maquiavelismo também compreende que o bom governo é aquele no qual o bem comum orienta o escopo de toda a ação política, de acordo com as regras estabelecidas, com o direito político, em defesa de uma liberdade republicana dos cidadãos e garantindo que estes sejam chamados a pronunciar-se acerca das opções públicas do Governo. Vocês conseguem observar alguma dessas características no atual (ou mesmo nos antecessores) governo brasileiro? Eu não. 

Vejamos o que as notícias do cenário político que mais impacto geraram nas últimas semanas revelam sobre a permanência, e aprofundamento, do diagnóstico da realidade brasileira proposta por Sergio Buarque de Holanda há quase 90 anos. Vimos Paulo Guedes reclamar, sociopaticamente como é do seu feitio, do impacto que o aumento da expectativa de vida do brasileiro terá na economia. O ministro mais importante e celebrado do governo deseja a morte precoce dos cidadãos. É possível imaginar perspectiva mais torpe de sociedade?

O mesmo Guedes, ao demonizar o ensino superior brasileiro, responsável por 90% de toda pesquisa cientifica feita na América Latina e por dar oportunidades reais de ascensão social e expansão do horizonte intelectual para os filhos e filhas das classes trabalhadores (me refiro aqui há todos aqueles que vivem do salário) dos estratos baixos, médios e altos da população se ressente do filho do porteiro vislumbrar fazer uma faculdade e romper com o ciclo de pobreza?

Mais uma visão torpe, distorcida e anti-povo, pois não imagina uma sociedade com menos desigualdade, com trabalhadores mais bem qualificados e capazes de contribuir para que o Brasil deixe, um dia, de ser mero exportador de commodities e passe a competir num mercado global onde a alta qualificação e especialização da mão de obra é condição si ne qua non para o sucesso.

Acompanhamos também o contínuo descaso do governo com a pandemia, apesar de ser possível afirmar que o Brasil concentra hoje aproximadamente um terço das mortes diárias por COVID-19 no mundo, mesmo com 3% da população mundial. Além disso, morreram mais pessoas por COVID no Brasil, apenas no mês de março, do que na pandemia inteira em 109 países, que soma 1,6 bilhão de habitantes. E nunca é demais lembrar que a maioria dessas mortes poderia ter sido evitada, pois já há vacinas disponíveis contra o COVID. Mas, em vez de priorizar o bem comum, o governo preferiu recusar por 11 vezes ofertas para compra de vacinas.

E o cenário de filme de terror só piora, já que o presidente insiste em contemporizar com a China e, em contrapartida, o país asiático cria empecilhos para que os insumos necessários para a produção de vacinas sejam enviadas para o Brasil. Em bom português, este é um governo empenhado em exterminar seu povo. É, sim, genocida.

Vimos também a aprovação do orçamento, com redução drástica de recursos para as universidades federais, que receberão o equivalente ao que recebiam em 2004, mas com o dobro de estudantes. O orçamento também não previu recursos para a realização do Censo em 2021.  O que, se confirmado, pode gerar um apagão na produção de dados e impactar negativamente a elaboração e implementação de políticas públicas nos próximos anos.

E, absurdo dos absurdos, ficamos sabendo de um “orçamento secreto”, um acordo entre o executivo e o grupo de parlamentares mais “fiéis” ao governo com a destinação de 3 bilhões de reais para o Ministério do Desenvolvimento Regional. Parte dos recursos foi utilizada, via emendas parlamentares para a compra de tratores e outras máquinas agrícolas a preços superfaturados.

Esse governo, cordial, anti-povo e corrupto, contribui para o extermínio da população de duas formas: pela inação e pela ação. As mortes de 0,2% da população brasileira, e a projeção de que se possa chegar a um milhão de mortos durante uma terceira onda da COVID prevista para junho, é fruto da inação governamental. Mas o governo também age ativamente para o extermínio da população.

O caso mais recente foi a chacina na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Uma ação coordenada por policiais civis invadiu a favela e executou 28 pessoas. As cenas do crime foram adulteradas para dificultar a perícia e os corpos dos morados assassinados foram retirados da favela pelos próprios policiais que os mataram. 

A execução de cidadãos brasileiros, pobres e em sua maioria negra, é o epítome da atualidade da metáfora do homem cordial, conforme definida por Sergio Buarque de Holanda. O presidente celebrou a ação; a polícia civil, em entrevista coletiva, considerou ação um sucesso e mostrou-se consternada apenas com a morte de um policial. Na imprensa, as chamadas davam atenção para o fato de que a maioria das pessoas assassinadas tinha algum envolvimento criminal ou passagem pela polícia.

Mas, de maneira cúmplice, deixaram de noticiar que no Brasil não há pena de morte e que a execução de qualquer cidadão, tenha ele cometido crime ou não, é ilegal, posto que nega a elei direito de ser julgado de forma justa e possa se defender e recorrer a todas as instâncias possíveis. Até na hora da morte, a cidadania de alguns brasileiros vale menos do que a de outros. Ou, como diz uma frase popular entre negros e mais pobres: nossa dor não sai no jornal.

E o cidadão médio, o homem cordial, emotivo que é o brasileiro? O que ele pensa sobre a execução de seus concidadãos? Bem, ele aprova, aplaude e acredita que bandido bom é bandido morto, afinal não é alguém próximo a ele nem um morador branco de uma região nobre. O homem cordial aposta na vingança e celebra o extermino dos seus congêneres.

Ele não quer justiça, pois se vê detentor de credenciais sociais e privilégios que impedem de ser vítima do mesmo Estado genocida que ele aplaude por matar pobres e pretos. Mas, cedo ou tarde, ele também será vítima do ódio que destina aos seus concidadãos do vértice inferior do triangulo desigual brasileiro.
Precisamos urgentemente reconstruir o Brasil, criar laços de solidariedade e solapar a cordialidade incivil do nosso convívio na esfera pública. Isso exigirá o tempo e o esforço de mais de uma geração. Enquanto isso, devemos ao menos garantir que esses versos cantados na década de 90 por Cidinho e Doca se concretizem:

Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
Mas eu só quero é ser feliz, feliz, feliz, feliz, feliz
Onde eu nasci
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)