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Estado de Minas Coluna

Fagulhas do medo

Talvez, o meu choro convulsivo consiga apagar o fogo de um mundo que não entendo mais, que não quero fazer parte


27/09/2020 04:00 - atualizado 15/04/2023 23:25


Ilustração
(foto: Quinho/EM/D.A Press)



Estou em chamas, queimada por dentro e por fora. Ninguém consegue apagar esse incêndio que, em labaredas, devora tudo em mim. Não consigo ver solução. Não há mais chance. Vejo o padre Júlio Lancelotti ser crucificado por algozes da intolerância, do preconceito, da falta de compaixão para com o outro. Vejo o padre Júlio Lancelotti ser ameaçado pelas chamas do ódio. Logo ele, que pratica o cristianismo real.

Não sai da minha cabeça uma das falas desse ser que prega no deserto, apesar da coroa de espinhos que enterraram na cabeça dele. Fico repetindo a fala do padre Lancelotti como um mantra, uma oração de amor, capaz de apagar a mesquinhez e a mediocridade desse momento atual: “Procuro Jesus no Sacrário, mas Ele teima em morar debaixo do viaduto”. Perdoai-os, padre Lancelotti, pois eles não sabem o que fazem!

Como diz uma letra de Bob Dylan: “Aqui tudo bem, só que eu estou sangrando", com a lança que acertou em cheio os meus princípios, a minha humanidade. Chamuscaram o meu coração. Não há um pingo de decência. Nem o coronavírus mortal pode conter o imoral que há na mente de pessoas tão perversas.

Meu aquecimento é pessoal – nem toda água do mar ou de uma tempestade de 40 dias seguidos pode apagar a insensatez. Nem a Arca de Noé que propus em uma das crônicas pode salvar o ser humano de tanto descalabro. Ou pode conter o abuso e o autoritarismo de um poder macabro, que se molda em fake news e algoritmos, que transforma os seres em robôs, em inteligência artificial, em mentiras deslavadas de que a terra é plana, de que os índios são os responsáveis pelos incêndios nas florestas. 

Como se não bastasse, assisti ao documentário Dilema das redes, que fala de uma geração que não vive mais sem as mídias digitais. Foi um soco no estômago. É melhor alguém que domina a tecnologia do que outro que tem talento e experiência para escrever. Talvez, o meu choro convulsivo consiga apagar o fogo de um mundo que não entendo mais, que não quero fazer parte. Um mundo seco, árido, inóspito, criminoso, comandado por algoritmos. Uma geração que vive de chupetas digitais, sem nenhum conteúdo, sem valores humanos, que acha que é melhor do que os outros, que não respeita o envelhecer nem tem tempo e paciência para uma conversa longa, olho no olho. Como disse Chamath Palihapitiya, um ex-executivo do Facebook, “as redes sociais estão dilacerando a sociedade”. Ele lamentou ter participado da criação de ferramentas que destroem o tecido social. Proibiu os próprios filhos de se viciarem nesse produto. Usuários de redes sociais, segundo ele, são tão dependentes quanto os de drogas pesadas.

Como se não bastasse o fogo que se alastra pelas chamas do ódio, pelo extermínio da cultura, dos nossos ancestrais, da sabedoria de nossas avós, dos índios, é preciso engolir sem mastigar, a dependência cibernética, os burocratas da vida. Preciso pedir desculpa às onças-pintadas de patas queimadas, aos micos leões dourados, aos elefantes, aos pássaros. A continuar desse jeito só vai restar a fuligem da existência na Terra.

Escrevo com fúria, em nome da natureza devastadora do ser, da falta de compostura e de seriedade coma vida. Há um complô contra os pobres, os feios, os humilhados e ofendidos, os diferentes, os negros e os velhos. Não há sinal de vida, tudo repete a mesma ladainha, o mesmo refrão da competição, da aparência. Do supérfluo. É melhor fazer festa, abrir bares, amontoar, beber e comer até vomitar, do que prestar atenção no essencial, na simplicidade que faz vida florescer.

É preciso consumir, assassinar as florestas, os animais, os pássaros que fogem do fogo em bando, que pedem socorro. Não há chance de escapar desse incêndio, das notícias vazias, digitadas sem nenhuma emoção, que só contribuem para a aridez de nossas vidas.

Desculpe-me, geração cabeça baixa, que só olha para o celular, mas prefiro continuar vasculhando o céu. Prefiro desligar o celular como prova de amor. Nem a chegada da primavera conseguiu arrancar os galhos secos do meu coração. Estou ardendo!
 

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