Minha mãe estranhou assim que soube da novidade.
– Frequentando a igreja, filho? Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Antes tarde do que nunca.
Agnóstico desde que, menino, ganhara capacidade de interpretar o mundo, deixei que minha mãe se alegrasse abundantemente. Ela então beijou o crucifixo três vezes e eu senti um ar de contentamento invadindo a cozinha.
– Que tal você abrir minha artesanal preferida pra gente brindar? Quero muito festejar essa surpresa que iluminou meu coração.
Ah, como ela amava aquela Porter. Mantinha à geladeira uma cota de reserva e não se cansava em exaltar o café do Jequitinhonha que acompanhava a receita. Eu por horas e horas à beira do fogão de casa com a pá cervejeira, o controle minucioso das chamas pra não estourar a temperatura, os cálculos minuciosos pra ajeitar a fórmula, garantir a coloração e composição ideais, o cuidado redobrado com a fermentação... e o café ganhava quase todos os créditos. Eu já não me importava mais...
Ao segundo copo, minha mãe retomou ao assunto:
– Mas, filho, o que te levou de volta à igreja depois de tantos anos?
Fui evasivo, a que não quebrasse o encanto daquela manhã de sábado.
– A vida dá voltas, né, mãe?
Ela pressionava os lábios repetidamente. Um velho tique de ansiedade.
– Me contaram que você até foi ao confessionário...
Aí, fiquei quase sem voz. Ô turma fofoqueira dos infernos! Virei o copo num gole só.
Detestava beber assim, mas era irritação. Putz! E olha que, educadamente, em seguida segurei o arroto. Olhei pra ela, já dando pinta de que não pretendia estender o papo.
– Vou ali e volto já.
– À igreja? – perguntou e sorriu marotamente.
Santo Cristo (ato falho, pessoal), como ela sabia? Me virei lentamente, pausei a respiração e abanei a mão, no estilo ‘larga pra lá’. Saí pisando pesado.
Assim que abri a portinha lateral da capela, padre Julien me aguardava em sua simpatia celestial.
– Bem-vindo à casa do Senhor, ainda que seus assuntos aqui sejam de outra ordem. Está pronto pra uma nova imersão naquilo em que crê de verdade?
– Mais do que pronto – fui respondendo e logo mostrando os apetrechos. O malte especial, os lúpulos e a levedura que ele recomendara. O coração foi se acelerando a caminho da ala subterrânea, onde as panelas nos aguardavam, com a água quase no ponto. Seria a terceira brassagem com um monge que trazia os segredos seculares das cervejas trapistas diretamente dos velhos mosteiros belgas.
Era pura glória divina pra alguém decididamente agnóstico. Aquele domínio sobre um conhecimento tão delicado carregava um quê de sagrado. Vá entender... Mais do que orgulhoso, fazia com que me sentisse abençoado. Trabalho concluído, voltei pra casa, dei com minha mãe à varanda e lhe sapequei um daqueles beijos que estalam à face.
– Sabe a sensação de ir pro céu?
Ela, boquiaberta:
– Andou bebendo, andou bebendo, né?
Eu só alimentei mais a curiosidade materna.
– A próxima brassagem vai dar bem mais que uma cerveja caseira.
E emendei, diante daquele olhar de pura curiosidade:
– Vai virar um néctar dos deuses.
Ela juntou as mãos, respirou longamente e disse a frase olhando pro céu:
– Jesus, vou ter de rezar muito pra esse menino.
E pronto baixou as miradas pra perguntar, ar de quem parecia não resistir à tentação:
– E qual vai ser o estilo mesmo, querido? Ah, e separa ao menos uma dúzia pra barraquinha da quermesse. Tamo junto...
– Frequentando a igreja, filho? Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Antes tarde do que nunca.
Agnóstico desde que, menino, ganhara capacidade de interpretar o mundo, deixei que minha mãe se alegrasse abundantemente. Ela então beijou o crucifixo três vezes e eu senti um ar de contentamento invadindo a cozinha.
– Que tal você abrir minha artesanal preferida pra gente brindar? Quero muito festejar essa surpresa que iluminou meu coração.
Ah, como ela amava aquela Porter. Mantinha à geladeira uma cota de reserva e não se cansava em exaltar o café do Jequitinhonha que acompanhava a receita. Eu por horas e horas à beira do fogão de casa com a pá cervejeira, o controle minucioso das chamas pra não estourar a temperatura, os cálculos minuciosos pra ajeitar a fórmula, garantir a coloração e composição ideais, o cuidado redobrado com a fermentação... e o café ganhava quase todos os créditos. Eu já não me importava mais...
Ao segundo copo, minha mãe retomou ao assunto:
– Mas, filho, o que te levou de volta à igreja depois de tantos anos?
Fui evasivo, a que não quebrasse o encanto daquela manhã de sábado.
– A vida dá voltas, né, mãe?
Ela pressionava os lábios repetidamente. Um velho tique de ansiedade.
– Me contaram que você até foi ao confessionário...
Aí, fiquei quase sem voz. Ô turma fofoqueira dos infernos! Virei o copo num gole só.
Detestava beber assim, mas era irritação. Putz! E olha que, educadamente, em seguida segurei o arroto. Olhei pra ela, já dando pinta de que não pretendia estender o papo.
– Vou ali e volto já.
– À igreja? – perguntou e sorriu marotamente.
Santo Cristo (ato falho, pessoal), como ela sabia? Me virei lentamente, pausei a respiração e abanei a mão, no estilo ‘larga pra lá’. Saí pisando pesado.
Assim que abri a portinha lateral da capela, padre Julien me aguardava em sua simpatia celestial.
– Bem-vindo à casa do Senhor, ainda que seus assuntos aqui sejam de outra ordem. Está pronto pra uma nova imersão naquilo em que crê de verdade?
– Mais do que pronto – fui respondendo e logo mostrando os apetrechos. O malte especial, os lúpulos e a levedura que ele recomendara. O coração foi se acelerando a caminho da ala subterrânea, onde as panelas nos aguardavam, com a água quase no ponto. Seria a terceira brassagem com um monge que trazia os segredos seculares das cervejas trapistas diretamente dos velhos mosteiros belgas.
Era pura glória divina pra alguém decididamente agnóstico. Aquele domínio sobre um conhecimento tão delicado carregava um quê de sagrado. Vá entender... Mais do que orgulhoso, fazia com que me sentisse abençoado. Trabalho concluído, voltei pra casa, dei com minha mãe à varanda e lhe sapequei um daqueles beijos que estalam à face.
– Sabe a sensação de ir pro céu?
Ela, boquiaberta:
– Andou bebendo, andou bebendo, né?
Eu só alimentei mais a curiosidade materna.
– A próxima brassagem vai dar bem mais que uma cerveja caseira.
E emendei, diante daquele olhar de pura curiosidade:
– Vai virar um néctar dos deuses.
Ela juntou as mãos, respirou longamente e disse a frase olhando pro céu:
– Jesus, vou ter de rezar muito pra esse menino.
E pronto baixou as miradas pra perguntar, ar de quem parecia não resistir à tentação:
– E qual vai ser o estilo mesmo, querido? Ah, e separa ao menos uma dúzia pra barraquinha da quermesse. Tamo junto...