Entre um assunto de família, amenidades sobre o clima, lindezas da música, meus doces preferidos de infância, tia Marina joga a pergunta que a gente pode responder com complexidade ou simplicidade.
– O que anda fazendo da vida, menina?
Fui no simples:
– Ah, muita coisa, tia. Até cerveja.
A cara de espanto.
– Cerveja? E foi parar nisso como?
Parênteses para o momento remember. Foi pensando em levezas quase juvenis que parti para aquele que seria meu batismo cervejeiro. A primeira aula sobre o grão de magia que me fascinara fazia tempos e, deixando pra semana seguinte, pro mês que vem, dois ou três anos já haviam se passado. Mas, finalmente, era eu ali. Admito que metida num certo desconforto. Giro minucioso à volta,
27 presentes, somente duas garotas.
Claro, ampliava meu grau de ansiedade. Me conhecessem, saberiam que aquele gesto de enlaçar e desenlaçar o cabelo entre os dedos era sinal mesclado de ligeira euforia e uma sombra de medo do desconhecido. Normal. Pensei em como seria fácil se valessem aquelas bobagens de quinta série, de dormir com um livro sob o travesseiro pra despertar na manhã seguinte com todos os conhecimentos que ele levava. Eu me embalava nessas inocências, quando o professor se apresentou. Exalava serenidade. Gostei. E prometeu logo quebrar tabus.
– Fazer cerveja é mais simples do que imaginam.
Vi o rosto do grupo, como o meu, se desarmando e ganhando uma luz que parecia ser a chave para todos os problemas do mundo. Vieram os relatos dos primeiros vestígios sobre a bebida, Suméria, Baixa Mesopotâmia... E os olhos se embriagando naquele mar de novidades. Grãos, açúcar, fermentação. Não demorou a que surgisse uma referência relâmpago a cadeias de carbono e notei certo desconforto que não era só meu. Biologia e química num enrosco que começava a soar indigesto.
Ao que o professor entrou de novo em cena, fixando-se nos candidatos a cervejeiros:
– Fazer cerveja é mais simples do que imaginam.
Ué, mas já não tinha dito aquilo?
Já, mas agora veio carregado de uma frase complementar:
– Mas fazer cerveja boa é mais complexo do que se possa pensar.
Ah, bommmm... Ah, ruimmmm... A feição coletiva passou do modo “feliz” ao “preocupado” num piscar de olhos. E ficaram mestre e alunos se mirando num silêncio prolongado, até que do fundo veio o questionamento tão necessário quanto tolo:
– Mas não tem jeito mais fácil?
Instaurou-se momentaneamente uma atmosfera de gelo, como que petrificando o ambiente.
– Tem. É comprar pronto.
A turma riu, relaxou.
– Mas imagino que tenham vindo aqui pra se colocar diante de um desafio que caminha com o Homem desde sempre, pensando até a partir da lógica primitiva. O de dominar a matéria. O de ter a capacidade transformadora. O de se tornar senhor dos sabores. O de controlar o poder do fogo. O de dar temperos novos ao mundo.
Exagero? Retórica teatral? Não. Bela metáfora. O burburinho agora era de declarado orgulho entre os que estavam ali. Eu já ia me entregando uma vez mais ao espírito desarmado, quando o mestre retomou a palavra.
– Encham-se de conhecimento, levem alquimia aos panelões cervejeiros, mas cuidem-se. Pode parecer contrassenso, mas não permitam que a complexidade sufoque delicadezas que navegam ali perto do que é simples.
Aulas, aulas e mais aulas, e aquela frase jamais me saiu da cabeça. E fui formando minha alma cervejeira da maneira que me deixava mais confortável: na soma de erros e acertos. Acho que, enfim, me encontrei, ora navegando nas formulações complexas, ora nas margens da simplicidade.
Volto a tia Marina, há meio século bebedora feliz e desavisada das cervejas com que as companhias gigantescas inundam o mercado, me perguntando sobre aquela “delícia” que eu tinha posto em seu copo. Era uma Vienna Lager. Delicada, beirando o âmbar.
– Diferente de todas, menina. Gostinho bom. Fez tudo sozinha? Me fala um pouquinho dela.
Pensei, e só pensei, no equilíbrio entre malte e lúpulo, nas notas levemente tostadas, na refrescância. Mas preferi buscar refúgio na simplicidade.
– Cerveja pra deixar a gente feliz, tia.
Ela sorriu. As feições lembravam minha mãe. E terminou por iluminar minha manhã de domingo:
– Te ensinaram mágica lá nesse curso, né, minha bruxinha linda. Te ensinaram mágica.