O bar não prometia muito. Mas o que haveríamos de encontrar por aquele ponto em que o mapa parecia fazer fronteira com as franjas do mundo? Paredes que haviam incorporado o poeirão da estrada, mesas de fórmica da velha guarda, um cachorro magro à porta e, vá acreditar, cardápio oferecendo cerveja da casa. Pedi logo uma, ainda que esperança à risca do zero. Valia, de todo modo, experimentar. Garrafa sem rótulo, copo lagoinha, virei mansamente.
O aspecto era surpreendentemente bonito. E fiz daquelas perguntas tolas à mulher que me atendeu:
– É boa? De onde vem?
– Ué... Dizem que sim. A gente faz aqui mesmo.
Provoquei, brincando:
– E quem faz não sabe se é boa?
– Desculpa, moço, é que eu não bebo.
Ops!!! Não o quê?
Ela tratou de mais que confirmar:
– Nunca bebi em toda a minha vida.
– Mas você fala só cerveja ou nenhuma outra bebida alcoólica?
– Isso. Nenhuma mesmo.
Tinha viajado até ali em busca de detalhes sobre sítio arqueológico recém-descoberto e não é que me caía às mãos uma história de tremenda riqueza jornalística? Para além disso, de uma tremenda riqueza humana? E que sabor aquela artesanal!
– Peraí, mas deixa eu entender. Esta cerveja fodástica que eu tou bebendo você fez e me diz que nunca bebeu nem dela?
– Sim. Quer dizer, não. E por que o espanto?
Caramba! Será que ela não percebia?
É verdade que eu já testemunhara coisas incríveis por aí. A bordadeira cega do Jequitinhonha cujos traços eram de uma delicadeza sem par. O cronista de futebol que, jamais tendo chutado uma bola, ‘lia’ uma partida como poucos. Ou prima Larissa, vegetariana, que preparava pratos à base de carne com assinatura pra lá de pessoal.
Mas juro que seria impossível uma quadruppel à beira da perfeição como aquela produzida por alguém que jamais houvesse colocado uma só gota de álcool na boca.
– Tou custando a acreditar. Como é que você aprendeu sem experimentar?
Ela mergulhou numa pausa longa. Teria idade parecida à minha, não mais que uns 50 anos.
– Pássaros, por acaso, vêm com GPS?
Responder a uma pergunta com uma outra pergunta era tática no mínimo intrigante. Bora jogar o jogo.
– Não, mas também você não tem estatísticas sobre setor de achados e perdidos se o assunto é passarinho, né? Que tal esquecer as aves e falar de cerveja. Como é que aprendeu, e como sabe se ficou bom sem provar?
Ela se afastou um pouco do balcão, como se protegendo. Me mirou de cima a baixo, desconfiada.
– E pode me dizer qual motivo de tanta curiosidade?
– Ôôô, desculpa... Nem me apresentei. Sou Sílvio. Jornalista. Agora, preciso entender essa mágica.
Foi a vez de ela me perguntar, numa aparente falta de nexo.
– Você tem fé?
– Como assim? Fé, fé mesmo? Tenho não.
– Pois eu tenho. E não precisei de uma audiência com Deus pra ter certeza de que Ele existe.
– Você já falou de passarinho, de fé... Só não me falou sobre cerveja. Conta.
Estranho é que o assunto parecia de alguma forma perturbá-la. Os olhos ficando marejados.
– Aprendi com meus pais, filhos de belgas.
Opa, os pontinhos começavam a se ligar.
– Por anos e anos acompanhava os dois produzindo, sentindo os aromas, descobrindo o frescor de cada malte. Faz tempo que estão num bom lugar.
Encerrou a frase e como que engoliu um sentimento amargo, numa reação que não precisava de traduções. Eu baixei o tom, procurei as palavras adequadas:
– Sinto por seus familiares. Não se incomoda em me dizer como, afinal, tem convicção de que fez uma boa cerveja?
Ela pareceu receber o pedido com uma dose generosa de ternura.
– Jamais mudei um milímetro do que aprendi com meu pai e minha mãe. Sei que eles estão por aí, em cada gota da cerveja que produzo. E isso me ampara, me conforta e acho que faz um bocado de gente um pouquinho mais feliz.
Foi bonito de ver. Eu me emocionei. Reservei uma caixa pra levar. E prometi a mim mesmo escrever sobre essa história como quem bebe da tradição e, surpreendentemente, nela se renova. Entre uma e outra taça, eis-me aqui.
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