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O presidente, o Supremo e 10 mil mortos pela epidemia

Faltou-nos e prossegue nos faltando um presidente, um líder que, mais que resoluto e possuído de coragem moral, demonstre, sem exibir, sentir o sentimento do outro'


postado em 11/05/2020 04:00 / atualizado em 11/05/2020 08:42

(foto: Evaristo Sá/AFP)
(foto: Evaristo Sá/AFP)
Não é improvável que em mais duas semanas, ainda nos idos de maio, o Brasil ocupe o epicentro mundial da pandemia, sobrepujando os Estados Unidos.

Descontada uma subnotificação da ordem estimada de até 1 milhão de casos de contágio e a subnotificação de um número ainda indeterminado de mortes pela epidemia do Sars-COVID-19, em 7 de maio o Ministério da Saúde informou a morte de quase 10 mil brasileiros pelo novo coronavírus e quase 150 mil infectados, assintomáticos ou que desenvolveram a doença.

Pela primeira vez o até então irresoluto ministro Nelson Teich admitiu a possibilidade do “lockdown”. Nesse dia, os estados do Pará, Maranhão e Ceará, além do município de Niterói, no Rio de Janeiro, já haviam decretado o “lockdown”, isto é, o confinamento social geral e a redução da mobilidade ao rigorosamente essencial e sob controle mediante o uso de vigilância policial.

Dada a progressão exponencial do contágio, nos próximos dias deveremos assistir aos estados do Amazonas, Amapá, Roraima, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, ou pelo menos as suas regiões metropolitanas, adotarem a medida extrema e imperiosa.

Ao temido colapso das redes hospitalares, como que em trama macabra seguiu-se em algumas capitais o colapso no funcionamento dos institutos de medicina legal, das funerárias e dos cemitérios.

A situação de horror estabelecida projetou em estado de indizível dor, sofrimento físico e psíquico, desamparo, angústia e dúvida sobre a humanidade dos humanos os familiares que vivenciaram esse funesto processo de morte em progressão lenta e agônica dos seus entes queridos.

Reduzidos à impotência em sua extrema fragilidade, em estado de consciência viram-se submetidos a uma situação de agonia respiratória decorrente da falta de vagas em leitos de UTI. Vivenciaram lenta e agonicamente a própria morte. Morriam por falta de acesso a um respirador ou ventilador pulmonar, ao tempo em que médicos e enfermeiros se viam premidos ao papel de um deus cruel, forçados, nas circunstâncias, a escolher quem irá dispor da chance de sobreviver e quem irá sofrer uma morte terrível.

Não bastasse viver tamanho sofrimento emocional e psíquico, que é psiquicamente viver em si a dor dilacerante do desamparo do outro, provavelmente em muitos casos uma dor irrevogável, os familiares ao desamparo assistiam os corpos já sem vida dos seus parentes permanecerem por um tempo que não se mede em horas depositados em leitos e macas dispostas em corredores ou acumulados em contêineres adaptados como câmaras frias, à espera de uma incerta vaga no transporte funerário.

A cena dantesca ainda não estava completa. Iria culminar com uma espécie de aterramento de corpos depositados em caixões, de madeira ou papelão, dispostos lado a lado, às dezenas, acumulados em grandes trincheiras escavadas por retroescavadeiras, seguindo-se, após a deposição dos caixões, o aterramento efetuado pelas máquinas. À distância, impedidos por medida sanitária de contenção até do direito ao adeus derradeiro, os vivos vivenciavam, incrédulos e horrorizados, a impiedade das impiedades, a impossibilidade de compartilhar a humana e singela compaixão de uma despedida digna. O horror confundia-se com a vida.

Médicos, sejam clínicos, pneumologistas, intensivistas e infectologistas, enfermeiros e auxiliares, fisioterapeutas, equipes do SAMU e de ambulâncias têm a gratidão de todo um povo e da nação, contudo insuficiente para oferecer-lhes reconhecimento à altura de sua grandiosa vivência naqueles momentos de suprema doação ao outro em ato espontâneo de santidade, heroísmo e, no limite da generosidade humana, disposição a um martírio consciente. Um povo, uma nação, não deixa ninguém para trás, não pode permitir e tolerar a infâmia do abandono na dor e na perda, até do direito ao luto. Ainda que surpreendidos por um inimigo terrível, invisível, altamente contagioso e letal, em algum momento e em algum grau, falhamos.

Nessa hora que clama pela união e pela prática da solidariedade e da compaixão, a nação se descobre fragmentada, fragilizada, humilhada ao testemunhar a ausência, o silêncio, a indiferença e o alheamento daquele de quem todos esperavam grandeza, elevação, compaixão, exemplaridade e liderança: faltou-nos e prossegue nos faltando um presidente, um líder que, mais que resoluto e possuído de coragem moral, demonstre, sem exibir, sentir o sentimento do outro.
Enquanto no Brasil real o povo vive a angústia do medo da epidemia em expansão, o presidente vive e transita e se compraz em uma realidade paralela, encorajando manifestações políticas sectárias, ofendendo a democracia e o estado de direito democrático, movendo guerra de atrito contra o Supremo e o Congresso Nacional, além de visitar quartéis e singularmente ocupar-se em prazerosa dedicação do seu tempo em gravações de “lives” dirigidas ao povo existente em seu mundo de uma realidade paralela, o povo de seguidores virtuais movidos a “perfis”, robôs e por um ser despossuído de qualquer compaixão. Nisso reside, condensa-se e se esgota toda a paixão do presidente.

Nesse 7 de maio e 10 mil mortos pela epidemia, o presidente irrompeu no Supremo Tribunal Federal à frente de uma passeata de uma dezena de empresários e outra dezena de ministros e deputados. Surpreso ante o inesperado de uma “visita” não agendada e de objetivo por ele ignorado, o presidente do Supremo, entre perplexo e incrédulo, contudo impassível, assistiu o presidente da República exibir-se em cena com gravação premeditada, não solicitada ou autorizada, uma live ao vivo.

De olho na câmara e sem olhar o interlocutor uma única vez, o presidente discursou para os ausentes enquanto ignorava o juiz, presente. A intenção consistia em exibir-se aos ausentes e pressionar o Supremo, atribuir-lhe responsabilidade pelo ato de reconhecer aos governadores e aos prefeitos a prerrogativa constitucional de decidirem pela aplicação do isolamento social como meio para conter uma rápida expansão da epidemia. No entanto, ali na sede do Supremo o presidente irrompera para condenar o próprio Supremo e os governadores e para sair em defesa de uma imediata interrupção do isolamento social, em defesa dos empresários, da economia, da “normalidade”.

Sem o isolamento social, aliás precarizado precisamente pela persistente oposição contra ele movida pelo próprio presidente, os mortos pela COVID-19 contariam 50 mil ou mais. Como mais de uma vez disse o presidente: “Fazer o quê? Não sou coveiro!” Esse 7 de maio, dia de angústia, também ficará assinalado e demarcado na alma dos brasileiros como o dia da infâmia.

João Batista Mares Guias é sociólogo, ex-secretário
de Educação de Minas Gerais e consultor em educação

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