Nas democracias, na esfera da vida privada muitos indivíduos mantêm-se encerrados na vida familiar, no mundo do trabalho e nos relacionamentos, e em razão desse egoísmo moderado demonstram-se péssimos cidadãos na esfera dos assuntos públicos. Contudo seria uma infrutífera crítica moral atribuir a esse conformismo moderado a causa do grande déficit de cidadania que tanto se observa de algum tempo a esta data em nossa vida democrática. Vivemos auges de participação cidadã: a “Campanha pelas Diretas, Já”, de 1984, a grande e contínua mobilização política, social e cultural, durante três anos, pela conquista da Assembleia Nacional Constituinte, até a aprovação da Carta Cidadã, em 1988, a campanha pelo impeachment do presidente Collor, em 1992, seguindo-se, após grande intervalo, as Jornadas de Junho de 2013.
Nos últimos dois anos o que se assiste é o bolsonarismo radical nas ruas em provocação ostensiva contra a democracia, pedindo intervenção militar com Bolsonaro.
De regresso ao ponto de partida, provavelmente o déficit de participação seja consequência de outro, o déficit de representação política. Seja em razão de nossa permissiva legislação partidária (cerca de 30 partidos), seja em consequência do voto proporcional em vez do voto distrital misto ou puro (menos de 10% dos atuais deputados obtiveram votação igual ou maior que o quociente eleitoral), seja porque não adotamos a lista partidária de candidatos preferenciais com perfis de liderança e de forte representatividade no plano das ideias e do compromisso programático partidário, ou, em chave mais sociológica, porque, após a era das lutas de classes e das grandes identidades político-ideológicas, nas sociedades pós-industriais modernas o que se observa, e cada vez mais, é um processo de fragmentação social em identidades coletivas segmentadas, cada uma apaixonada pela sua “causa única”.
Vivenciamos uma espécie de crepúsculo da ação coletiva com enfoque em um projeto nacional-democrático de mudanças. Ao mesmo tempo em que os fatos assim se impõem, nunca se observou tamanha escalada de ataques à política como tal, tamanho desprestígio dos partidos e tamanha descrença na vida pública. Onde há fumaça pode haver fogo. Temos um notável e sombrio déficit de sociedade civil organizada.
De regresso ao ponto de partida, provavelmente o déficit de participação seja consequência de outro, o déficit de representação política. Seja em razão de nossa permissiva legislação partidária (cerca de 30 partidos), seja em consequência do voto proporcional em vez do voto distrital misto ou puro (menos de 10% dos atuais deputados obtiveram votação igual ou maior que o quociente eleitoral), seja porque não adotamos a lista partidária de candidatos preferenciais com perfis de liderança e de forte representatividade no plano das ideias e do compromisso programático partidário, ou, em chave mais sociológica, porque, após a era das lutas de classes e das grandes identidades político-ideológicas, nas sociedades pós-industriais modernas o que se observa, e cada vez mais, é um processo de fragmentação social em identidades coletivas segmentadas, cada uma apaixonada pela sua “causa única”.
Vivenciamos uma espécie de crepúsculo da ação coletiva com enfoque em um projeto nacional-democrático de mudanças. Ao mesmo tempo em que os fatos assim se impõem, nunca se observou tamanha escalada de ataques à política como tal, tamanho desprestígio dos partidos e tamanha descrença na vida pública. Onde há fumaça pode haver fogo. Temos um notável e sombrio déficit de sociedade civil organizada.
Uma breve crônica do “Nós contra Eles”
Afinal, a prática da ação política em nossa democracia tem sido objeto de intenso combate. Na década de 1990, por exemplo, na ausência de uma extrema direita e de uma direita democrática organizada o PT abriu guerra ideológica contra os governos da socialdemocracia, reivindicando-se a “ética na política” contra a “corrupção”. O enfoque do PT era a imposição da “sua” hegemonia.
Até o final daquela década, vencera a guerra ideológica contra a socialdemocracia no governo, que, como partido, acovardara-se ao não defender as ideias e realizações do seu próprio governo. Não há como e não se deve esquecer o modo como o PT conduziu, na TV, a campanha presidencial de 2002, exibindo ratos roendo a bandeira nacional numa alusão ignominiosa ao governo FHC.
Isso sem contar a sectária campanha do “Fora FHC”, de 1999. Tampouco se deve esquecer a abominável campanha, antecipatória do “fake news”, que, uma vez mais, o PT desencadeou contra a candidata Marina Silva, em 2014, acusando-a de financiada pelo banco Itaú. Como se vê, o uso do fake news na disputa política tem, também às esquerdas, história recente em nosso país.
Até o final daquela década, vencera a guerra ideológica contra a socialdemocracia no governo, que, como partido, acovardara-se ao não defender as ideias e realizações do seu próprio governo. Não há como e não se deve esquecer o modo como o PT conduziu, na TV, a campanha presidencial de 2002, exibindo ratos roendo a bandeira nacional numa alusão ignominiosa ao governo FHC.
Isso sem contar a sectária campanha do “Fora FHC”, de 1999. Tampouco se deve esquecer a abominável campanha, antecipatória do “fake news”, que, uma vez mais, o PT desencadeou contra a candidata Marina Silva, em 2014, acusando-a de financiada pelo banco Itaú. Como se vê, o uso do fake news na disputa política tem, também às esquerdas, história recente em nosso país.
Embalada na Lava-Jato, a partir de 2014 a extrema-direita começava a se formar e certamente prestou atenção ao jogo de “soma zero” da esquerda contra adversários de centro-esquerda. Na década de 1990 o PT inventara o “Nós” ou a cidadela virtuosa da ética na política contra “Eles” ou o mundo das elites corruptas, ou, por outras palavras, em chave mais atual, a “nova política” versus a “velha política”.
Penso que a prospecção arqueológica da ancestralidade da disputa política como guerra por outros meios poderá projetar alguma luz sobre os acontecimentos atuais em nosso país e desnudar as brechas por onde foi se insinuando o bolsonarismo, da “saída do armário” à ação política organizada.
Penso que a prospecção arqueológica da ancestralidade da disputa política como guerra por outros meios poderá projetar alguma luz sobre os acontecimentos atuais em nosso país e desnudar as brechas por onde foi se insinuando o bolsonarismo, da “saída do armário” à ação política organizada.
Ah, ironia! Virtudes do primeiro governo nacional do PT à parte, em 2005 irrompia o “mensalão”. A resposta do PT foi o silêncio complacente e obsequioso. Em nome da governabilidade e para conter a possibilidade do processo de impeachment, o Palácio do Planalto orquestrou uma santa aliança no poder e para o poder em condomínio com o “centrão” e o MDB. A cumplicidade do PT com o que ficaria conhecido como o “centrão” gerou gêmeos: a governabilidade e, em gestação e pleno desenvolvimento delitivo, o “petrolão”. Anos adiante seria objeto de investigação da Operação Lava-Jato, de 2014.
Por sua vez, a Lava-Jato gerou gêmeos distintos: Sérgio Moro e Jair Bolsonaro. Saberíamos anos mais tarde que Moro e o lavajatismo iriam formar o embrião de uma direita conservadora nacional em organização, e que a candidatura de Jair Bolsonaro ensejaria a oportunidade de irrupção e protagonismo de uma extrema direita nacional reacionária, banhada em autoritarismo e belicosidade. Encontraram-se no bolsonarismo no poder, e, uma vez no poder, romperam relações como “inimigos amarrados”.
Por sua vez, a Lava-Jato gerou gêmeos distintos: Sérgio Moro e Jair Bolsonaro. Saberíamos anos mais tarde que Moro e o lavajatismo iriam formar o embrião de uma direita conservadora nacional em organização, e que a candidatura de Jair Bolsonaro ensejaria a oportunidade de irrupção e protagonismo de uma extrema direita nacional reacionária, banhada em autoritarismo e belicosidade. Encontraram-se no bolsonarismo no poder, e, uma vez no poder, romperam relações como “inimigos amarrados”.
De certa forma, essa é uma crônica do desencantamento dos cidadãos frente à prática da política. A “ética na política” saía de cena, amesquinhada, para ceder lugar, alguns anos adiante, em reedição da “vassoura” ou o combate à corrupção prometido pelo ex-presidente Jânio Quadros (1961), ou da “caça aos marajás” do ex-presidente Fernando Collor (1989), ambos de triste figura. De posse da Lava-Jato como símbolo, o “bolsonarismo” emergente começava a ocupar os vazios de representação e de participação, vocalizando, no plano dos valores, tradições, costumes e expectativas de segurança, uma vez mais, o combate à corrupção, em oportunista e facilitada simbiose com aquela Operação.
Mais uma vez, a farsa na luta contra a corrupção
A farsa se repete. Pois em menos de ano e meio de governo o presidente Bolsonaro tudo fez e faz para obstruir, no Rio de Janeiro, as investigações sobre a “rachadinha” praticada no gabinete do então deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, ao ponto de em todo esse tempo empenhar-se na substituição do superintendente da Polícia Federal naquele estado. Nessa senda, deslocou do ministério da Justiça e da Segurança Pública a responsabilidade pelo comando do Coaf (Conselho de Acompanhamento Financeiro), instrumento institucional indispensável para “seguir o dinheiro” em casos de investigação de corrupção. Ao mesmo tempo, persistia em substituir o diretor-geral da Polícia Federal para ali colocar alguém que se sujeitasse a passar-lhe (ilegalmente) informações reservadas sobre o andamento de investigações vinculadas a inquéritos que transcorrem em segredo de Justiça. Isso feito precisamente quando ao Supremo Tribunal Federal incumbira-se de presidir o processo investigativo sobre as “fake news”, por solicitação do Congresso Nacional, além de também presidir o processo investigativo sobre as manifestações do movimento do “bolsonarismo” nas ruas e sua pregação ostensiva de “intervenção militar com Bolsonaro” e “ditadura com Bolsonaro”.
Na sequência, após guerra aberta de hostilidade unilateral contra o Congresso Nacional e o Supremo, o presidente, alvo de inúmeras petições endereçadas à Câmara dos Deputados para a instauração de processo de impeachment, abre o Palácio do Planalto para recepcionar o novo e preferencial aliado parlamentar: o velho “centrão” do “mensalão” e do “petrolão”. A fraude ideológica e o estelionato eleitoral se repetem. Os interlocutores do presidente, com os quais acerta a distribuição de cargos no governo, são os mesmos que tramaram e organizaram o “mensalão”, lado a lado com o PT, os condenados e presos Roberto Jefferson, do PTB, Valdemar da Costa Neto e Arthur Lira, atual líder do “centrão”, et caterva. Eis que a “nova política” sucumbe aos encantos da “velha política”, assim como, no passado, a “ética na política” sucumbira às “razões de estado”, isto é, a perpetuação no poder, na era do lulismo.
A grande esquecida e banida da política: a participação
Paradoxo dos paradoxos observou-se sob o “lulismo” no poder o refluxo da tão afiançada quanto exaltada “participação” dos movimentos sociais e da sociedade civil em processos de tomada de decisões sobre políticas públicas. Na ocasião, quase dois mil líderes sindicais e centenas de líderes sociais trocaram a ação na sociedade civil por posições de poder no governo, disso resultando o pior dos mundos: o eclipse da participação, uma das marcas originárias do PT, nos tempos quando a época ainda era uma épica. Após o primeiro governo Lula, o segundo Lula e a presidente Dilma Rousseff e, com ela, o PT, demonstraram-se alheios à ideia e refratários à prática da “participação”, antes um valor inscrito na cultura política originária do partido. O governismo absorvia os movimentos sociais.
Todos os atores políticos, às esquerdas, ao centro e às direitas – essas, ainda um tanto invisíveis –, e todos os atores sociais, lado a lado com cidadãos de todas as classes e idades, em junho de 2013 pela primeira vez deram-se o poder de voz e a vez da “participação”. Surpreenderam o poder e o PT, a sociedade e a si mesmos naquelas monumentais “Jornadas de Junho”, quando o Brasil dos brasis das bandeiras de cada um tomou as ruas em protesto geral, em inconformismo amplo, geral e irrestrito nascido das difusas aspirações oriundas da “inclusão pelo consumo” e da ampliação de oportunidades geradas sob o lulismo.
O lulismo gerou gêmeos: ele e a sua superação. Fato novo desde 1964, as direitas também tomaram as ruas naquele Junho de 2013. Quebraram o monopólio das esquerdas em sua tradicional cidadela de protesto: as ruas. Rapidamente aprenderam o caminho e tomaram gosto. Decerto, o ano de 2012, tomado pelo julgamento do “mensalão” sob a batuta do Supremo Tribunal Federal, sangrou na veia da saúde do PT e abriu alas à geral ousadia nas ruas. O pior estava por vir: o PT sangrou na própria veia da saúde ao ignorar seus erros, recusar-se a uma autocrítica e a empreender mudanças. Encapsulou-se. Nas ruas de 2013 também começava a florescer a direita liberal-democrática no país, adiante corporificada no Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por jovens adeptos de um liberalismo atavicamente retrógrado na linhagem do “estado mínimo” e de “todo poder ao mercado”. Bolsonaro começava a se movimentar como futuro candidato. Enxergou o vazio e dedicou-se a ocupar o indisputado e amplo espaço do “lavajatismo” e do inconformismo difuso e sem rumo, adicionando-lhe os valores do tradicionalismo e, não sem razão, o clamor por segurança como um novo ingrediente dos direitos humanos.
Para uma arqueologia do bolsonarismo
O ano de 2014 exibiu dois fenômenos, simultâneos e concorrentes, a reeleição da presidente Dilma Rousseff e o início do protagonismo nacional da Operação Lava-Jato. A disputa final em segundo turno confrontou um candidato do PSDB que até então lograra ocultar os seus crimes de corrupção nas brumas do privilégio de foro, contra uma presidente cujo partido carregava sobre os ombros o manto de chumbo do “petrolão”, com suas veias abertas pela Lava-Jato. O silêncio ensurdecedor do PT face à sua prática de corrupção sistêmica e sistemática amplificou a voz da Lava-Jato e entregou, de vez, a bandeira da legalidade e do combate à corrupção às direitas em formação.
Pela segunda vez as esquerdas entregavam a bandeira da legalidade às direitas. A vez primeira culminou no golpe de 1964: é como a extrema-direita usa a legalidade! Não bastasse, a presidente reeleita gerou da ideologia, por partenogênese, a maior crise econômica desde a década de 1980, uma prolongada recessão e 13 milhões de desempregados, a queda da renda média da população, a volta da pobreza absoluta, o retrocesso por comparação aos êxitos sociais redistributivos do lulismo.
Seguiu-se o impeachment e a investidura presidencial de Michel Temer. A Lava-Jato destruiu o governo Temer quando ele apenas começava a alçar voo próprio e colhia os primeiros êxitos decorrentes de uma eficiente gestão da economia. Crise sobre crise e Lava-Jato. Em 2018 irrompe o candidato Jair Bolsonaro, de um quase nada, para dar voz a uma adventícia extrema direita ultrarreacionária, na linhagem do “tradicionalismo”. Aliás, com nenhuma afinidade eletiva com o “conservadorismo” como visão de mundo, cultura política e compromisso com a democracia. Seja como for, no vagalhão da bipolarização nacional o “bolsonarismo” reacionário atraiu o nosso frágil conservadorismo e somou a seu favor o lavajatismo. Sem um projeto para o país, não obstante, apresentou uma agenda, adiante comentada. Venceu.
*Sociólogo, ex-secretário de Educação de Minas Gerais e consultor em educação