Judicialização e o construtivismo político de consensos verdadeiros
A intolerância atual nada tem de episódica. Abaixo dessa ponta haveria o iceberg. A intolerância está se estabelecendo e entre nós exercendo fascínio ao ponto de, em nome de razões de pretensão civilizatória, destacar os resultados em detrimento dos processos, os fins sem escolher os melhores meios, as maiorias eventuais e provisórias em lugar do amplo e paciente debate, o sucesso em lugar da cultura política republicana, a judicialização em lugar da prática do construtivismo político de consensos verdadeiros – ainda que parciais –, o vanguardismo multicultural em lugar da “participação” dos cidadãos em geral, o esteticismo em lugar de um projeto de nação ou povo-nação democrático, republicano e amplamente coeso.
Como o “bolsonarismo” no poder reagiu à agenda sociocultural do progressismo de esquerda e liberal? Primeiro, estabeleceu que seguem a “doutrinação” das esquerdas os professores de educação básica, as comunidades universitárias de alunos a docentes e cientistas, e o mundo da cultura organizada. Se posicionados no campo das esquerdas, logo, são intelectuais orgânicos ou difusores de um “marxismo cultural”, acusa. O propósito geral das esquerdas, diz o bolsonarismo, seria o de impor a sua hegemonia ideológica e cultural e os seus valores seculares sobre a sociedade brasileira. Como? Por meio de uma “guerra de posição cultural”, ocupando a imprensa, as universidades, as escolas públicas, o movimento editorial, o cinema e os vídeos, a cultura organizada, em geral. A extrema-direita bate na tecla de que a agenda do “marxismo cultural” é a nova roupagem do velho comunismo. Na falta da velha luta de classes e de uma classe operária à moda antiga, a nova estratégia do comunismo internacional, diz o bolsonarismo, seria minar a autoridade, solapar a hierarquia social e impor a igualdade ao preço da liberdade, destruir a família nuclear e os costumes e as tradições, combater a religião e a religiosidade e o dogma por meio de um radical processo de secularização, dissolver o senso de comunidade e difundir e aderir ao globalismo, e, assim, dissolver a ideia e o sentimento de estado-nação ou de povo-nação. Ao invés da Internacional proletária do passado, a nova Internacional comunista é o “globalismo” antinacional, estabelece.
A agenda do “bolsonarismo” e a brecha ocupada pela extrema-direita rumo ao poder
Os meios até então anunciados e prodigalizados pelo “bolsonarismo”, não importa a eficácia, têm sido: i) o ataque total, generalizado, à imprensa e aos jornalistas, vistos como agentes do “marxismo cultural”; ii) hostilidade às universidades federais, o programa Escola Sem Partido – destinado à contenção da “doutrinação ideológica marxista” nas escolas de educação básica do país e à intimidação dos professores e dirigentes escolares; iii) o “negacionismo”, significando anti-intelectualismo e desprezo pela razão científica, expresso, por exemplo, no incentivo ao “criacionismo” nos currículos escolares, em contraposição ao “evolucionismo”. No caso da epidemia do novo coronavírus, o “negacionismo” alcançou o paroxismo quando o presidente o equiparou a uma “gripezinha”, politizou o uso da hidroxicloroquina e abriu guerra contra o isolamento social; iv) uma agenda propositiva na área de segurança pública, com ênfase em tópicos como o armamento dos indivíduos como “direito”, o “excludente de ilicitude” para policiais (licença para matar); por fim, sobretudo, v) os ataques em série, alternados ou não, contra o Congresso Nacional e o Supremo, poderes de Estado e contrapesos constitucionais, acusados de ser as cidadelas de defesa da agenda do “marxismo cultural”, onde os temas dessa agenda, como a “ideologia de gênero”, o casamento gay, e outros, são acolhidos na forma de nova jurisprudência e com o status adquirido de direitos fundamentais.
Em resumo, o bolsonarismo pôs em marcha uma “guerra de movimento” em modo contínuo contra o “sistema”, que inclui, além dos poderes, o Legislativo e o Judiciário, o federalismo, as organizações da sociedade civil e as universidades e a cultura organizada, promotores do “marxismo cultural”. Inventou a segunda “Guerra Fria”, dessa vez, interna. Por outras palavras, às esquerdas e à extrema-direita fixou-se no país a percepção de que vivemos duas guerras: apesar dos esforços em contrário do governo federal, a guerra contra a epidemia, desejavelmente transitória, e a “guerra cultural”, prolongada, movida pelos esforços iguais e contrários das esquerdas e da extrema-direita até que um lado obtenha a destruição do “outro”, e o “vencedor”, a “hegemonia” sobre toda a sociedade. Na verdade, como se dizia ao tempo da Primeira Grande Guerra, uma “guerra de atrito”. Portanto, pelo lado da extrema- direita, uma estratégia de aniquilação; pelo lado das esquerdas, hegemonia. A estratégia do “bolsonarismo” patentemente tem oferecido sucessivas demonstrações de que ao combater o chamado “sistema”, tem como alvo a própria democracia. Outra, das esquerdas e do “progressismo”, em geral, quer a democracia sem o republicanismo, do qual faz o elogio discursivo sem, contudo, internalizá-lo como valor, a ele aderir e, é claro, pôr em prática.
Em nome do combate ao “marxismo cultural”, durante a campanha eleitoral o candidato Bolsonaro estabeleceu relação simpática e capturou em larga escala os apoios de diferentes igrejas evangélicas neopentecostais e o apoio da corrente teológico-pragmática da chamada “teologia da prosperidade”. Penetrou nas classes populares, antes cidadela exclusiva do “lulismo”. Entre o empresariado, atraiu as velhas e as novas elites econômicas emergentes. Capturou o apoio de parte expressiva das chamadas “novas classes médias” egressas do “lulismo” ou da “inclusão pelo consumo” da era Lula. Na disputa entre campos ideológicos radicalizados, intransitivos e politicamente contrapostos, o liberalismo conservador brasileiro migrou em direção ao bolsonarismo, que o atraiu com a isca do sentimento anti-PT. Fica a pergunta: a “inclusão pelo consumo” e a ofensiva mudancista no campo da agenda cultural e da sociabilidade, em razão do “método” de conquista, produziram uma mudança cultural-atitudinal no comportamento, atitudes e expectativas das classes populares?
Seria um equívoco primário atribuir ao bolsonarismo em formação um poder de atração de apoios apenas à base de uma agenda da negação: negar o PT e combater a corrupção e atrair o lava-jatismo magnificado pelo êxito da Operação Lava-Jato e seu líder símbolo, o então juiz Sérgio Moro. O bolsonarismo em formação também foi propositivo: i) segurança pública, assunto de fato negligenciado por todos os governos precedentes, além de liminarmente excluído de uma agenda progressiva de direitos humanos; ii) prover os brasileiros do acesso à Justiça; iii) no campo dos valores, defesa da família, tradição, costumes, religião, ordem, autoridade e hierarquia, autoridade versus política ou, por outras palavras, “nova política” versus “velha política”, isso associado ao combate sem trégua contra o que designa de “sistema”; v) agenda liberal em economia: privatizações, responsabilidade fiscal, teto de gastos, reformas (previdenciária, administrativa, tributária, trabalhista) e retomada do crescimento.
Patentemente, o governo do bolsonarismo é um fracasso retumbante. A questão é, primeiro, como enfrentá-lo e derrotá-lo na ação política? Ou formamos, desde agora, um amplo campo democrático unificado, da direita democrática às esquerdas, ou, na dispersão, perderemos a janela histórica das eleições de 2022 provavelmente para o lava-jatismo organizado em oposição ao bolsonarismo. Ou, na dispersão, assistiremos, em segundo turno, ao “bolsonarismo” versus “lava-jatismo”, a que se seguiria uma longa travessia de semidemocracia ou autoritarismo constitucionalizado.
Segue-se ao desafio político o desafio substantivo: que ideias, que programa, que projeto democrático e republicano de retomada do crescimento com desenvolvimento sem pobreza, redução das desigualdades, investimento e elevação da produtividade, e que reformas? A contar de agora, dispomos de apenas dois anos para agir e oferecer respostas.
Epílogo
A esperança está nos jovens
Há, em aberto, muito a fazer. Um passo ao alcance da vontade é, de imediato, a realização de uma conferência nacional unificada dos movimentos liberais e democráticos de formação de jovens lideranças políticas reunindo o “Livres”, o “Acredito”, o “Agora”, o “Raps” e o “Renova BR”. Da Conferência poderia resultar um campo unificado da liberal-democracia à social-democracia em busca de uma aproximação pelo centro e centro-esquerda com as juventudes do Novo, do DEM e do PSDB, ampliando-se ao Cidadania, à Rede e ao PSB. Daí poderia resultar uma coordenação comprometida com uma ação coletiva permanente dedicada a organizar e realizar cursos, debates, seminários, edição de materiais para diferentes mídias, com alcance nas universidades, escolas de ensino médio e bairros e vilas das periferias urbanas, excluído qualquer tom doutrinário ou de inculcação de uma agenda. Líderes das religiões católica e evangélicas e outras deveriam ser procurados, com foco nos líderes dos movimentos jovens a elas vinculados, convidados a falar e livremente expor o que pensam e debater. Sem ouvir o ponto de vista do outro, não dá nem pra começar. As palavras-chave precisam ser tolerância, debate, ouvir o outro, praticar o construtivismo de consensos verdadeiros, ainda que parciais, com centralidade na ideia de democracia como valor universal. O enfoque, o republicanismo, sem o qual a democracia não se consolida.
Na sequência, penso que seria adequado experimentar um intercâmbio de ideias e de propostas com o MBL, que acaba de passar à oposição ao governo Bolsonaro e ao bolsonarismo. Portanto, bem-vindo ao campo da democracia. Pois se através dos jovens líderes esse país não for capaz de ousar organizar um campo unificado em torno da valorização e defesa da democracia, decerto fracassaremos, pois as esquerdas, aliás sempre em luta entre si, não dispõem, pelo menos atualmente, da “virtù” ou capacidade de direção para promover um movimento nacional visando à formação de um campo democrático unificado. Entram para fixar hegemonia! No caso do PT, um grande partido, a esperança parece residir na ação coordenada dos governadores dos estados do Nordeste, hoje as lideranças mais promissoras e decididas à participação em um campo democrático unificado. Se assim acontecer, haveremos de construir um sólido e competitivo campo democrático capaz de fazer a extrema-direita “voltar ao armário” ou, menos mal, dissipar-se no lava-jatismo.
Aos jovens: será preciso conquistar um lugar ao sol, será preciso ir às ruas (agora, não; após o controle da epidemia) e aonde o povo está. Nunca em confrontação direta com o bolsonarismo para medir quem põe mais gente nas ruas. Não interessa esse titanismo inútil. Penso que inteligente e penetrante seria a organização periódica, agendada, de “ocupações” pacíficas, muito bem organizadas, na linhagem do Movimento Ocupe e com grande participação dos jovens residentes nas proximidades de cada local escolhido. Nos fins de semana, ocupar praças, em alternância de locais, com uma agenda de assuntos para debate, com transmissão ao vivo pelas redes sociais e assim por diante, sem interrupção do trânsito, e com ampla divulgação prévia. Esse movimento deverá pautar-se pela ambição de dispor de um grupo organizado de jovens em cada bairro, vila e favela, em cada cidade desse país. Não deverá limitar-se às classes médias cultas, senão nascerá, uma vez mais, mais do mesmo. Pelas mãos dos jovens, chegar aos jovens das classes populares, às vilas e às favelas e às periferias, onde o povo real está e vive. Isso alcançado, pela base, então, quando necessário, às grandes mobilizações pacíficas.
Deverá ocorrer um entrecruzamento de assuntos, com destaque para o desemprego dos jovens, a qualidade da educação básica, as oportunidades de formação profissional para o trabalho e a renda, a questão do saneamento básico e as obrigações do poder local, a universalização do acesso à internet e ao computador para os jovens pobres, e, é claro, o debate sobre a crise e saídas, a democracia e o republicanismo. Importante não descuidar do debate sobre a agenda de reformas em discussão no Congresso Nacional. Os temas da chamada agenda cultural decerto serão assuntos de grande interesse. Os líderes desses movimentos deverão ser convidados a debater. O movimento em construção deverá aprender a construir uma agenda de compromissos a partir desses debates, sem imposições, uma agenda em aberto. Lideranças são decisivas, porém, organizadas em colegiados, sem personalismos. É um começo. Esperança na ação.
No plano político, será fundamental construir a coesão em torno de uma candidatura única do campo de centro-esquerda à centro-direita democrática. Sem o “centrão”, é claro. Deixemo-lo à mesa com Bolsonaro. Esse, penso, é o caminho para a democracia triunfar sobre a estupidez bolsonariana, é o caminho pelo voto e pela resistência democrática contra o autoritarismo para retirar Bolsonaro do poder. É o caminho, também, para organizar a resistência civil e pacífica, contudo de grande coragem, para barrar o golpismo bolsonariano em ação e defender a democracia mediante a ocupação, aí sim, permanente, das grandes praças, na linhagem da resistência civil e absolutamente pacífica.
Interessa chegar até aonde o povo está, onde os jovens das classes populares vivem, e com eles interagir. Quebrar as fronteiras entre as classes, entre as religiões. Aprender sobre a possibilidade da covalência de valores até eventualmente contraditórios. Viver. Lutar.
Coragem.
Portanto, mãos à obra, moçada.