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Poesias do cotidiano

"Os filhos ensinam a mãe a jogar videogame. Ela percebe, pelos olhares, que eles a estão deixando ganhar a partida"


27/11/2022 04:00

O vaso com as folhagens está na sala de visitas, no mesmo lugar, há 10 anos. Exige pouco: sombra e alguma água fresca. Faz parte da decoração. Bastou o filho ter aulas de música no mesmo ambiente, porém, para acontecer o milagre. A planta floriu, pela primeira vez. 

Ela abre a gaveta do armário do banheiro e encontra um frasco novo de desodorante, do mesmo que costuma usar, de lavanda e lilás. O dela já estava no fim. Ela se sente abraçada pelo presente.

Na pista de cooper, o morador do bairro passeia com o seu cão Pug. Os dois têm a mesma cara amarrada, mas ao vê-la, o bichinho late para ela, como se estivesse cumprimentando, dando um “oi”. O tutor dele, então, é obrigado a sorrir.

Durante a caminhada, na mesma noite, ela quase pisa em uma peninha branca, linda, parecendo uma pluma. Dizem que, quando isso acontece, é sinal de que o anjo da guarda está por perto. Verdade ou não, ela se sente protegida.

Ela vai buscar o filho na casa do amigo, que mora no Santa Lúcia. Já conhece as ruas do bairro, que levam nomes de estrelas e planetas, mas erra o caminho. Em vez de passar pela Via Láctea, vai pela Lua. E agora? Pega o Cosmos ou entra em Marte? O destino é a Rua Universo.

No Gutierrez, uma senhora de cabelos brancos toma sol deitada no passeio em frente de casa. Um velho tronco de árvore serve de espreguiçadeira. Quando dá um tempo bom, ela desce de maiô e viseira para a calçada. Pode ser vista até lá pelas 9h, na Rua Almirante Alexandrino, perto do Barroca Tênis Clube.

O pássaro constrói o ninho em cima da janela do seu escritório. Vira e mexe ele tenta entrar, batendo a cabeça no vidro. Ela daria tudo para trocar com ele de lugar. “Voa passarinho, voa!”, pensa ela, lembrando a letra de um hino antigo da Copa do Mundo.
l Na volta do parque, a mãe pede a ajuda dos filhos para preparar o lanche. O caçula propõe um suco improvável de mexerica, limão e maçã. O mais velho acrescenta catchup e tomate ao misto quente. Ninguém se importa com o sabor. O gostoso é fazer bagunça juntos.

Os filhos ensinam a mãe a jogar videogame. Ela percebe, pelos olhares, que eles a estão deixando ganhar a partida. Erram os lances, de propósito. Quando ela consegue passar na primeira fase do jogo, fazem festa. Viva a mamãe! Ela se sente uma dinossaura, mas feliz. 

A leitora Jamily Nacur, de 84 anos, encaminha o seu primeiro livro para a coluna. Envia o exemplar pelos Correios e convida para ir até a casa dela, em um gesto de delicadeza. O título da obra já encanta: “A Sonoridade do Silêncio”.

Nas 79 páginas, ecoam os versos: “Não te esquives da morte, apresente a ela o seu projeto de vida”; “Que a tua roupagem seja de fácil descarte”; “Regozija-te sob o seu silêncio e aprenderás a tua linguagem”. 

Como ensina a autora, o silêncio fala, as pequenas coisas inspiram, a vida pode ser mais simples e bela. O cotidiano respira poesia. 

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