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Estado de Minas LINGUAGEM

Acolher o desconforto é uma forma de entender onde estamos errando

A partir de uma reflexão sobre linguagem, vem grande incômodo com nossa dificuldade de acolher pessoas trans e pessoas não-binárias dentro da própria língua


05/10/2021 06:00

Pessoa transgênera se maquia
Assim se faz a luta política: com escuta, com voz, com sensibilidade e com força (foto: Freepik)

 
Pensar o feminismo e assumir para si esse lugar discursivo e político é tanto acolhedor quanto angustiante. Há momentos em que a sensação da angústia vence, e a gente fica tentando encontrar onde está o desconforto. E o que fazer com ele. 

Nos últimos tempos venho tateando esses incômodos, apurando alguns sentimentos, elaborando outros. Talvez o primeiro e maior deles foi o entendimento das limitações do meu próprio feminismo, racionalmente empenhado em não ser liberal, colonial e branco demais e o sendo mesmo assim.
 
Obviamente. E superada a primeira camada de desnorteamento fui recobrando o rumo, a partir de um lugar mais sincero e real: é preciso revestir o discurso de sustança, rever meus conceitos de liberdade, ouvir mais e aprender. Fiquei imersa nas leituras do feminismo decolonial, assentando cada palavra, recalculando minhas rotas internas, sentindo. 
 

'Reivindicar, por exemplo, o uso exclusivo do termo mulher como forma de não-apagamento de diversas conquistas e existências às custas do apagamento de outras existências violentadas cotidianamente não faz sentido algum'

 
 
A partir das discussões sobre linguagem (a linguagem neutra, as violências perpetuadas pela própria língua, o uso/não uso de determinados termos) veio um outro grande incômodo com nossa dificuldade de acolher pessoas trans e pessoas não-binárias dentro da própria língua.
 
Nossa, digo do feminismo mesmo, enquanto movimento. Ou de uma parte considerável dele. Reivindicar, por exemplo, o uso exclusivo do termo mulher como forma de não-apagamento de diversas conquistas e existências às custas do apagamento de outras existências violentadas cotidianamente não faz sentido algum.
 
É endereçar nossas pautas de maneira equivocada e desleal. As palavras e expressões podem coexistir na língua, atendendo à comunidade de falantes que assim se identificar com elas. Temos que conhecer nossas disputas para que não erremos de inimigo. 

No terreno da maternidade, outros percalços sustentados pela negligência ao tratar o assunto de formas estanques: ou invisibilizamos as mães apagando suas existências individuais ou determinamos um conjunto rigoroso de regras de como maternar. E muitas vezes essas regras vêm revestidas de um verniz progressista, é preciso assumir.
 
Mas não deixam de ser regras e de quererem dizer sobre um modo mais aceitável de criar suas crianças, de alimentá-las, de amamentá-las, de desmamá-las, de educá-las. Assim, sem nuances, sem conversas, sem acolhimento das realidades distintas.

E isso começa na discrepância de informações acerca das escolhas possíveis sobre o próprio parto, nas violências obstétricas que atingem mais mulheres negras de maneira notável e na construção de um discurso de liberdade incongruente com o tempo e as oportunidades que temos para conhecer nossos próprios corpos e entender seus sinais e desejos.

Há que se perceber que os possíveis desconfortos não se guiam de forma alguma por um recuo conservador ou por um desmerecimento do que se alcançou até hoje. Andamos um caminho considerável, compartilhamos sentidos e construímos os usos de um vocabulário que até bem pouco tempo era limitado a locais e grupos específicos.
 

'Nomear esses incômodos não enfraquece nosso lugar enquanto feministas, tampouco o movimento, como algumas pessoas poderão supor.'

 
 
Se hoje usamos expressões como direitos reprodutivos, misoginia, machismo, equidade, participação política de mulheres, interseccionalidade, feminicídio, não-monogamia, entre tantas outras é porque o feminismo levou essas discussões a espaços cada vez maiores, dos jornais (como esse em que você me lê) às redes sociais. 

Nomear esses incômodos não enfraquece nosso lugar enquanto feministas, tampouco o movimento, como algumas pessoas poderão supor. É justamente o contrário.
 
Refletir sobre o que estamos pautando, acolher as dores, amplificar as vozes e recalcular caminhos deveriam ser ações cotidianas e naturais de qualquer movimento que acompanha os passos da própria vida; que busca uma sociedade justa e que se sustente ao longo dos tempos, tantos quanto forem esses tempos tão diferentes entre si.
 
Assim se faz a luta política: com escuta, com voz, com sensibilidade e com força. Raramente se faz só, mas também não se faz com qualquer um. E é por isso que somos o que buscamos: transformações políticas e sociais que nos permitam existir sem medo, com dignidade e segurança. 
 

*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universitária nos cursos de Comunicação, Artes e Educação) 

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