Existe um lugar de equilíbrio muito fino que buscamos acessar para nos dizermos feministas e - em alguma instância, de fato - sermos. Porque é um lugar duro, um lugar de reflexão. E é um lugar de desconstrução, sem dúvida, mas há que se construir algo também, a partir daí.
Me incomoda a ideia reiterada de um descontruir-se que não resulta em movimentos mínimos de ação no mundo. Um processo de desconstrução pode durar uma vida, e durante esse tempo como fazemos para transformar esses pedaços que caem?
Quando nos vemos nesse lugar, é comum que deixemos muita coisa para trás, comportamentos, vocabulários, crenças. Mas e esse arsenal de coisas novas que nos invadem, como elaboramos? Vestimos o nosso novo modo de estar no mundo e desfilamos com ele por aí, tal qual um adereço de moda, uma camiseta, um brinco, ou fazemos do adereço uma escolha permanente, amplificada pela nossa intervenção ativa nas coisas que nos rodeiam?
'A cruel falta de empatia que mães e crianças vão experimentar durante o trajeto, recebendo olhares de condenação, bufadas de ódio, reclamações diretas e toda a sorte de manifestações de incômodo possíveis'
Essa semana estava fazendo meu tour diário pelos perfis do instagram que sigo e me inspiro, e li uma postagem da @carolburgo sobre a aventura agoniante que foi a longa viagem de avião dela com sua filha pequena, de menos de dois anos. Entrar num avião com uma criança de qualquer idade é um terror que acompanha as mães em geral. É possível notar esse desespero quando cruzamos seus olhares ali dentro, já agoniadas pelo que está por vir.
E o que está por vir que agonia não é o choro em si, algo perfeitamente natural, mas a cruel falta de empatia que mães e crianças vão experimentar durante o trajeto, recebendo olhares de condenação, bufadas de ódio, reclamações diretas e toda a sorte de manifestações de incômodo possíveis.
Crianças choram, mães choram junto de exaustão e impotência. São muitos direitos básicos negados num episódio assim: o direito de ir e vir e o direito de sentir. Mesmo os deslocamentos mais curtos podem se tornar pequenos pesadelos, confinando mulheres a espaços cada vez mais domésticos, solitários, privados.
A pergunta que eu faço, voltando ao início desse texto, é justamente sobre como você – nós – acolhemos essas mulheres quando vivemos situações assim. Seu feminismo te coloca ao lado delas, na prática? Você facilita a vida de uma mãe que se encolhe de desespero dentro de um avião tentando evitar o impossível, ao falar com ela, oferecer apoio, espaço, ajuda? Ou você sente compaixão, mas se cala? Ou, ainda, você está intimamente concordando com boa parte dos seus vizinhos (marco aqui o masculino com destaque) de voo sobre a incompetência daquela mulher, que ali é também mãe, na tarefa tão simples de manter uma criança calada?
Eu endereço essas perguntas a você, mas também as faço com o mesmo vigor a mim mesma. E é constrangedor encarar nossas limitações, o tanto que só somos tocadas pelo que nos atinge, mantendo a empatia na prateleira mais alta dos sentimentos que contemplamos como peça rara, valiosíssima, mas bonita demais para ocupar a mesa do dia a dia.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universitária nos cursos de Comunicação, Artes e Educação)