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Estado de Minas ALFORRIA

Minas lidera em número de libertos do trabalho escravo, mas agenciadores ainda lucram

No aniversário da Lei Áurea há pouco a comemorar Minas lidera no número de pessoas libertadas este ano, mas agenciadores lucram com trabalhadores em situação degradante


postado em 13/05/2013 06:00 / atualizado em 13/05/2013 07:18

Rogério dos Santos, de 32 anos, conheceu a semi-escravidão na infância (foto: (Aparício Mansur/Esp. EM))
Rogério dos Santos, de 32 anos, conheceu a semi-escravidão na infância (foto: (Aparício Mansur/Esp. EM))
Foi com a tinta de uma pena dourada, há exatos 125 anos, que a regente imperial princesa Isabel do Brasil assinou o documento que oficialmente pôs fim à escravidão no país. A Lei Áurea foi motivo de festa por uma semana no Rio de Janeiro, a capital, e comemorada com danças e fogos em Minas Gerais, província com maior número de escravizados. De 1888 até hoje, contudo, milhares de brasileiros seguiram subjugados por empregadores inescrupulosos, submetidos a condições que em pouco diferem das de senzalas e troncos dos antepassados.

Apenas de janeiro a abril, cerca de 240 trabalhadores foram libertados de trabalhos em situação análoga à escravidão. Minas Gerais foi o estado no qual mais vítimas foram resgatadas, com 82 pessoas “alforriadas” nos quatro primeiros meses do ano, seguido de Mato Grosso do Sul (62) e de São Paulo (41). Nos últimos 10 anos, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) registrou 40.819 pessoas em situação de semiescravidão. Em Minas foram 2.143 trabalhadores no período, o terceiro maior número. Gente à procura de trabalho que acaba confinada em alojamentos sem água potável, saneamento, exposta a doenças e mantida por intimidação.

Nos últimos anos, Minas Gerais esteve – com Pará e Goiás – entre os três piores registros de trabalho escravo do país. Não apenas por submeter gente de outros estados a essas condições, mas por seus cidadãos ingressarem no ramo degradante. A reportagem do Estado de Minas mostra, no campo e nos grandes centros, brasileiros de origem humilde e em busca de oportunidades levados à exaustão em trabalhos de condições precárias em carvoarias, nas lavouras e na construção civil. Muitos são vítimas de esquemas mesquinhos, com gente que se passa por empreiteiro e mantém os canteiros ativos por meio do endividamento dos funcionários, retenção de documentos e ameaças a parentes.

Em contato com sindicatos rurais, cooperativas e depósitos do Norte de Minas, a reportagem se passou por uma empreiteira que precisava de funcionários. Assim, conseguiu chegar a cinco agenciadores de trabalhadores em Bocaiúva, João Pinheiro e Buritizeiro. Eles deixaram claro que a qualidade de acomodações, transporte e condições de trabalho não interferiria no acordo.

Uma das cidades onde mais gente é recrutada em Minas é Bocaiúva. Lá, dois estabelecimentos que trabalham com grandes volumes de material de construção indicaram o mesmo agenciador, um homem que se diz “empreiteiro”, e se identificou como Cosme. Em apenas 20 minutos de negociação por telefone, ele acertou o envio de 50 homens para trabalhar como serventes de pedreiro e carpinteiros em três frentes de obras fictícias no Bairro Buritis, Oeste de Belo Horizonte. “Mando gente pro Brasil inteiro. Agora mesmo são 30 em Itabira, tem em Belo Horizonte, Vale das Cancelas, Salinas, Mato Grosso do Sul, Norte, Nordeste e Sul”, disse.


O esquema
Ao descrever o funcionamento do serviço, o homem mostra como controlar os operários. “Você tem de ter uma base aqui em Bocaiúva, que vai ser eu. Porque se você está lá (em BH) e a família do cara (trabalhador) fica sem dinheiro, ele vai embora. Se a mulher adoece, (o funcionário) foge para arrumar remédio”, conta. “Comigo aqui, dou o dinheiro, dou o remédio, passo documentos. O cara fica nessa dívida, mas continua aí (em BH), com você. Mesmo se o trabalho estiver puxado. Mesmo que depois dê problema e atrase pagamento. A gente sabe como essas coisas são…”, contemporiza.

A reportagem insiste em mostrar que será um emprego irregular, com alojamento ruim, mas ainda assim precisando de “gente boa de serviço”, e afirmando, ainda, que reteria as carteiras de trabalho. “Moço, não tem nada não. Aqui vem ônibus de 30 em 30 dias buscar uma turma para trabalhar assim. A gente faz do jeito que você quiser. Pode levar eles (sic) para fichar (assinar a carteira) aí. Você é que manda e desmanda”, garante. Os homens ele que consegue chegam por meio de “gatos”, que são intermediários. “Tem as pessoas certas que trazem aos distritos a turma que nós precisamos. A gente só faz uma entrevista para ver se (o trabalhador) sabe fazer o que você precisa”, disse Cosme.

Pessoas como ele se valem de mercados em expansão e da falta de escrúpulos de certos setores. “Resiste, ainda, na mentalidade de muitos empregadores brasileiros, uma cultura de exploração e de desconsideração dos direitos sociais dos empregados”, resume o professor de História-Contemporânea, especialista em estudos sobre a escravidão da Universidade Federal de Minas Gerais Luiz Duarte Haele Arnaut.

Operários das dificuldades

O auditor-fiscal Ernesto Veloso calcula já ter libertado 300 pessoas em 38 anos(foto: SOLON QUEIROZ/ESP. EM)
O auditor-fiscal Ernesto Veloso calcula já ter libertado 300 pessoas em 38 anos (foto: SOLON QUEIROZ/ESP. EM)
Pirapora – A primeira forma de trabalho conhecida pelo catador de material reciclado Rogério dos Santos Reis, de 32 anos, foi alimentando fornos de carvão nas roças da região da Serra do Cabral, entre os municípios de Lassance, Várzea da Palma e Buenópolis, no Norte de Minas. Sem outro jeito de conseguir sustento para a família, com apenas 11 anos enfrentou a fuligem, a fumaça negra e o calor escaldante numa situação análoga à de um escravo. Praticamente não tinha salário, porque o valor da alimentação era descontado da remuneração. “Tinha mês em que a gente não recebia nada. Só comia arroz puro, com água de cabaça e algumas vezes, maxixe que arrancava na região mesmo”, conta.

Quando alguém se atrevia a reclamar do patrão, ele era irredutível e mandava que voltassem ao trabalho, ameaçando de demissão. Não havia liberdade entre os tocos de lenha e sacos de carvão. “Às vezes, a gente era liberado para vir à cidade ver a família. Tinha que ir num dia e voltar no outro para que a produção de carvão não caísse”, lembra. “Quando chegava em casa com pouco dinheiro, minha mãe reclamava. Mas, como não tinha estudo, para sustentar a família tinha de aceitar aquela vida mesmo”, desabafa Rogério.

A rotina extenuante durou a adolescência inteira, até completar 19 anos. Hoje, casado e pai de dois filhos, Rogério trabalha numa associação de catadores de Pirapora, também no Norte de Minas, e fatura até R$ 800 mensais. Mas, sempre que vê as cicatrizes deixadas pelos cabos de foice e pás nas mãos engrossadas pelo trabalho se emociona ao lembrar das dificuldades pelas quais passou. “Naquela época, nem roupa para vestir eu tinha. Quando vinha à cidade, a gente era confundido com mendigo”.

Filhos do medo


Ninguém denunciava a situação degradante por medo de que todos ficassem sem trabalho, já que um homem chamado Ari era quem agenciava a comunidade. “Nós não podíamos denunciar, porque não conseguiríamos mais arrumar serviço”, justifica. “O que mais me dói é o fato de não ter estudado, não ter aprendido a ler. Minha mãe tinha vida muito sofrida. Nosso pai abandonou a gente muito cedo”.

O combate ao trabalho escravo, desde os abolicionistas, nunca deixou de ser travado. E há quem tenha se destacado nessa função, como o auditor fiscal do Ministério do Trabalho de Montes Claros, Ernesto Veloso Costa, que calcula ter libertado 300 pessoas, em 38 anos – ele se aposentou em 2012. “As condições piores que encontramos foram em carvoarias. Mas também houve flagrantes em plantações de café, feijão e outras atividades no campo, onde, ao longo da história, o trabalhador foi muito maltratado, sem ter os seus direitos protegidos pelos órgãos públicos”, conta.


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