Brasília e Belo Horizonte – O Brasil esbanja recursos naturais. De tudo se perde. A cada ano, 26,3 milhões de toneladas de comida são jogados fora: volume suficiente para distribuir 131,5kg para cada brasileiro ou 3,76kg para cada habitante do planeta. Toda essa comida alimentaria facilmente os 13 milhões de brasileiros que ainda passam fome, nas contas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Poderia ainda facilitar o trabalho do Banco Central no combate à inflação. Com uma oferta maior de produtos, os preços não subiriam tanto e o país poderia até mesmo diminuir a importação de feijão preto da China.
O desperdício de comida provoca mais do que prejuízos financeiros, gera revolta e inconformismo. Ainda assim, o Brasil pouco se mobiliza no sentido de mudar esse quadro. Desde 1998, a chamada Lei do Bom Samaritano, em alusão a uma passagem bíblica, tramita no Congresso Nacional, e não há previsão alguma para que seja votada. A intenção da proposta é isentar doadores de alimentos de responsabilidade civil e penal, se agirem de boa fé, na distribuição de comida — semelhante ao que ocorre em países da Europa e nos Estados Unidos.
Enquanto essa lei não é aprovada, o Estado brasileiro pune severamente os doadores. A legislação atual prevê até cinco anos de prisão caso quem receba os alimentos sofra algum tipo de dano em decorrência da comida. Com isso, donos de restaurantes, por exemplo, se sentem obrigados a despejar no lixo as sobras diárias da produção. “É um crime”, define o diretor-executivo da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Gustavo Timo.
O ajuste na legislação, segundo Timo, poderia ajudar e muito o Brasil a conter o desperdício. “A regra em vigor é completamente inapropriada. Por parte do setor, não falta boa vontade”, insiste o representante da Abrasel, ressaltando que em outros países existem programas organizados de doações, para evitar que toneladas de comida em bom estado acabem no lixo.
Entraves
Combater a assombrosa perda de alimentos, no entanto, é muito mais complexo. O pesquisador Antônio Gomes, do Centro de Agroindústria de Alimentos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), enumera outros entraves, como o manuseio inapropriado dos produtos no campo, as embalagens inadequadas utilizadas no transporte e o armazenamento ineficaz no atacado.
Aprimorar o escoamento da produção agrícola, sustenta Gomes, aumentaria a oferta de alimentos sem a necessidade de alterar a área plantada. Em determinados casos, como o da banana e o do morango, o desperdício no caminho entre a propriedade e a prateleira do supermercado chega a 40%. “Quem arca com esse prejuízo é o consumidor”, lembra o pesquisador da Embrapa, ao explicar que no fim das contas o produto que se perdeu no caminho se converte em aumento de preço.
O desperdício de que fala Gomes é facilmente percebido nas centrais de abastecimento. Por dia, os irmãos Berlândio e Ernandes da Silva jogam no lixo de 50 a 60 caixas de alimentos que, na avaliação deles, não poderiam ser aproveitados. “Às vezes, a comida já chega estragada. Ou então com uma aparência que a gente sabe que a dona de casa não vai comprar”, diz Ernandes.
VIDA REAL São muitos os brasileiros que diariamente ficam de prontidão nas Ceasas espalhadas pelo país, enquanto funcionários separam as frutas e verduras aceitáveis pelo mercado. “A gente fica sentido, porque, mesmo assim, a perda é muito grande. Tanta gente passando fome e nós aqui jogando essa comida no lixo”, desabafa Berlândio.
Desde que contraiu uma trombose na perna e perdeu o emprego de auxiliar de serviços gerais, Cilene de Sousa Rodrigues, de 47 anos, vai à Ceasa de Brasília duas vezes por semana garantir os alimentos da casa, onde vive com seis pessoas. “Isso aqui é ouro”, afirma ela, segurando uma maçã retirada de uma caçamba de lixo. “Amanhã é dia de verdura”, avisava ela.
Todos os dias milhares de pessoas também desperdiçam comida nos restaurantes. Além de não consumirem tudo o que foi produzido pelos estabelecimentos, deixam comida no prato. No restaurante self-service João Rosa, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, onde cerca de 350 refeições são servidas por dia – uma média de 120 quilos de comida –, a perda chega a ser de 16% do total produzido, cerca de 20 quilos por dia. Em dinheiro, o prejuízo diário varia entre R$ 600 e R$ 800. No mês, considerando 20 dias úteis, pode chegar a R$ 16 mil.
Além da comida que sobra no bufê e vai para o lixo, em função das normas da vigilância sanitária que não permitem o reaproveitamento, a sócia-proprietária Catarina das Graças Artur, conta que parte do seu faturamento também vai embora com aqueles que colocam a comida no prato, mas não comem. “Cerca de 30% não consomem tudo o que servem”, afirma.
Perdas de dinheiro e horas no trânsito
O brasileiro tem demorado cada vez mais para chegar ao trabalho. O desperdício de tempo no trânsito, sobretudo nas metrópoles, pode superar uma hora a depender do trecho percorrido. Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceira com a Universidade de Oxford, mostra que a mobilidade urbana pune principalmente os habitantes das cidades mais populosas, onde a renda per capita é maior e a proporção de pessoas com carro também. Nos últimos 20 anos, o tempo gasto no trajeto aumentou 4,5% no Brasil. Esse percentual cresceu ainda mais em Brasília e em Belo Horizonte, onde as taxas foram de 6,2% e 6,5%, respectivamente.
A pesquisa mostra que, em áreas metropolitanas, o deslocamento do brasileiro até o trabalho saltou de 36 minutos, em 1992, para 38 minutos. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, passou de 38 minutos para 43, em média. No Distrito Federal, o tempo saiu de 33 minutos para 35 em cada deslocamento, enquanto em Belo Horizonte variou de 32 para 34 minutos.
O técnico do Ipea responsável pela pesquisa, Rafael Henrique Moraes Pereira, destaca que o tempo de deslocamento nas áreas metropolitanas do Brasil aumentou 4% para os mais pobres e 15% para os mais ricos. A pesquisa revela que com o passar dos anos, os brasileiros de maior renda aumentaram o tempo que ficam no trânsito. Até 1992, o deslocamento dessa parcela da população era nove minutos menor que o registrado pela fatia de baixa renda. Essa diferença, agora, caiu para seis minutos. “Muitas cidades estão se espraiando, o que aumenta as distâncias para todos. No caso dos ricos, os condomínios estão ficando mais distantes”, explica.
Na pesquisa, Pereira ressalta ainda a importância de investimentos em transporte urbano. Curitiba e Porto Alegre, que nos anos 1990 investiram na área, praticamente mantiveram o tempo médio de viagem dos habitantes. “Não existe saída se não repensarmos o transporte público. É praticamente impossível enxergar uma taxa de mobilidade saudável nas grandes cidades em função da pouca oferta de transporte”, comenta.
Cansados de acordar até três horas antes do expediente e ainda enfrentar filas intermináveis na estação do metrô, o representante comercial Hélcio Lemos e a esposa, a publicitária Rafaela Cristine Lemos, optaram por fazer o trajeto de casa para o trabalho de carro. Para isso, perdem quase duas horas no trânsito. “De metrô e ônibus é ainda pior porque estão sempre cheios e perdemos muito tempo esperando um veículo mais vazio”, conta Hélcio. “No fim do trajeto, já estamos bem cansados e perdemos um pouco da produtividade no trabalho, sem contar o estresse”, completa Rafaela. A vontade do casal é transformar o tempo perdido em atividades ou em mais tempo para dormir, mas o que acontece é o inverso. “Acabamos trabalhando mais para não pegar o horário de rush, ficamos mais tempo no trabalho”, lamenta Hélcio. (CM)