A crença na graça divina leva mais de 15 milhões de brasileiros a cruzarem o país todo ano em visitas a santuários, igrejas, casas e museus que abrigam objetos considerados sagrados. Seria fluxo suficiente para encher 100 estádios de futebol com a capacidade do Rungrado May Day, da Coreia, o maior do mundo. Mais do que pagar promessas e oferecer ex-votos, a fé inabalável dessas multidões está longe de ser obra da antropologia ou algo que a sociologia dê conta de explicar, observa a professora e folclorista Deolinda Alice dos Santos. Essa multidão demanda uma rentável estrutura de bens e serviços. Por ano, as viagens impulsionadas pela fé no país movimentam R$ 15 bilhões, conforme cálculos conservadores do Ministério do Turismo.
O cantor e compositor Renato Teixeira também tratou desse fenômeno da religiosidade nos versos de Romaria: “Me disseram porém,/que eu viesse aqui,/Pra pedir, de romaria e prece,/Paz nos desalentos...” Em Minas Gerais, o fervor dos fiéis se traduz em 31 eventos tradicionais conhecidos de homenagens a santos e 22 romarias em nome de divindades religiosas e pessoas virtuosas, catalogadas na publicação Festejos religiosos – Registros da fé e do folclore, de autoria de Deolinda Santos. Há dois anos, ela cumpriu todos os roteiros e continua estudando a devoção.
“Há um processo de vida e transformação em volta da fé. A força espiritual é que move as pessoas, algo mais forte do que se imagina. No entorno da devoção há a prática do pagamento da promessa e a ajuda recebida a essa atitude”, afirma. Uma das demonstrações de fé mais impressionantes para Deolina, ela mesma devota de Nossa Senhora do Rosário, São Miguel e São Sebastião, pode ser vista na Festa de Nossa Senhora da Abadia, no município de Romaria, no Alto Paranaíba. Cerca de 200 mil devotos comparecem em agosto. Eles chegam depois de até três dias de caminhada, ou transportados em carros de boi.
Outro exemplo surpreendente é a participação dos mineiros na romaria a Aparecida (SP), um dos maiores centros de peregrinação religiosa da América Latina. Segundo a Secretaria de Estado de Turismo e Esportes, os mais de 5 milhões devotos de Minas Gerais são a metade dos peregrinos que a cidade recebe por ano, boa parte originada no Sul mineiro. Para Deolinda, essa devoção talvez ímpar está associada à história da formação socioeconômica de Minas. Diferentemente do litoral do Brasil, não foram as ordens religiosas do século 18 que influenciaram na religiosidade do mineiro – naquele tempo, elas eram proibidas de entrar na província. “Aqui, partiu do povo a iniciativa de buscar proteção e ajuda divinas.”
Os números sobre o turismo religioso e as romarias são imprecisos no Brasil e podem superar de longe a estatística oficial informada pelo Ministério do Turismo, com base no calendário de destinos consolidados do turismo religioso. O roteiro é liderado pela romaria a Aparecida, seguida dos festejos em Juazeiro do Norte, no Ceará, que reúnem 2 milhões de devotos do Padre Cícero, e do Círio de Nazaré, homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, que atrai 1,5 milhão de pessoas em Belém (PA). As peregrinações às cidades históricas de Minas (Ouro Preto, Mariana e Congonhas) e Salvador (BA) são destacadas no calendário, no entanto, sem medição do número de visitantes.
Caminho real Inspirado no caminho de Santiago de Compostela, na região da Galícia, na Espanha, o Caminho Religioso da Estrada Real (Crer) será lançado em abril pela Secretaria de Estado de Turismo e Esportes. São 1.033 quilômetros de percurso ligando os santuários de Aparecida e de Nossa Senhora da Piedade, em Caeté, na Grande Belo Horizonte, abarcando 37 cidades na rota principal, das quais 32 em Minas Gerais. Na região de Ouro Preto, haverá bifurcação para que os fiéis optem entre os roteiros passando por Itabirito e Mariana.
Inovação do circuito, credenciais entregues aos peregrinos receberão carimbo oficial em pontos estratégicos da viagem. Assim que o caminho for concluído, a qualquer tempo os devotos terão, então, direito ao certificado do roteiro concedido em Aparecida ou na Serra da Piedade, informou Graziele Vilela, superintendente de Estruturas do Turismo da secretaria mineira.
A expectativa é de que no primeiro ano de funcionamento do caminho seja atraído pelo menos 1% do universo de romeiros que vão a Aparecida. O santuário de Nossa Senhora da Piedade recebe, em média, 80 mil visitantes por ano.
Maria são muitas
Em Minas Gerais, há homenagens a Maria Santíssima em mais de 105 títulos, como padroeira dos distritos sede de várias cidades e também nos arraiais. Mais de 300 municípios organizam festejos para receber cortejos nas coroações da virgem, pagamentos de promessas, levantamentos de mastros, espetáculos pirotécnicos, oferecendo barraquinhas de artesanato e culinária especial, como relata a professora Deolinda Alice dos Santos no livro Festejos tradicionais mineiros – Registros de Fé e do Folclore. Ela conta que no século 18, quando as ordens religiosas eram proibidas de entrar em Minas, bandeirantes, mineradores e portugueses que chegavam para trabalhar na administração das minas e no campo construíam pequenas capelas e começaram a estimular o culto aos seus santos de devoção.