Daniela Garcia
Brasília – Criado para democratizar as oportunidades de acesso às vagas em universidades públicas federais, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ainda é uma realidade mais presente na vida dos estudantes das escolas privadas do que aqueles que concluem o ensino médio em uma instituição pública. Levantamento feito pelo Instituto Áquila, a pedido do Estado de Minas, sobre os dados do Censo Escolar e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), mostra que, enquanto 10% de alunos concluintes do ensino médio de escolas particulares deixaram de fazer a prova em 2012, o índice chega a 42% na rede pública.
Amanda Pereira dos Santos, de 18 anos, é uma entre esses estudantes que deixaram de fazer a prova em 2013, quando estava cursando o 3º ano do ensino médio em uma escola pública. Ela teve a chance de fazer a prova com a inscrição gratuita, mas o teste pareceu impossível para a garota, que deseja cursar enfermagem. “Não fiz a inscrição, porque acho que nunca iria passar para uma universidade pública”, afirma.
A falta de confiança de Amanda não tem a ver com baixa autoestima ou a falta de incentivo em casa, afirma a doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) Paula Nascimento da Silva. “Essa autoexclusão do Enem está muito mais ligada à questão de estrutura da escola, que faz com que eles se sintam incapazes de fazer a prova.” Ao longo dos últimos quatro anos, os alunos concluintes do ensino médio vêm aumentando a adesão ao Enem, segundo dados do Inep, o que não garante a universalidade sonhada pelo Ministério da Educação (MEC).
Paula é autora de uma tese de doutorado, defendida em 2013, que discute as barreiras ideológicas que atrapalham o acesso de alunos de ensino público às universidades estaduais e federais. Por seis meses, em 2010, ela acompanhou de perto o cotidiano de alunos do 3º ano de uma escola estadual paulista. A instituição escolhida como objeto de trabalho contava com uma boa média no Enem. “O poder público tem desenvolvido diversas políticas na tentativa de aumentar o número de estudantes das universidades federais vindos das escolas públicas, tal como a isenção de taxas de vestibulares, os sistemas de cotas, de bônus, entre outros. Entretanto, verifica-se que essas iniciativas não resultaram em uma mudança no perfil de alunos que buscam a universidade pública: permanece uma maioria de estudantes autodeclarados brancos, com renda familiar acima da média e egressos das escolas privadas”, diz.
Segundo a pesquisadora, o senso comum de que, no Brasil, as escolas privadas são melhores do que as escolas públicas afastaria os alunos mais pobres da competição. “A autoestima é uma valorização que o sujeito faz do que ele é, construída nas relações que mantém com o mundo. Jovens que vivenciam situações de não aprendizagem no contexto escolar precisam de condições de vida e de formação que permitam não se sentirem inferiores”, analisa.
Insegurança
A pesquisa de Paula Nascimento detectou, por exemplo, que a falta de confiança dos jovens estava ligada à ausência diária de professores na sala de aula. “Eles ficaram seis meses sem ter aula de português”, lembra Paula. Para ela, mesmo com a contratação de substitutos, jovens de escolas públicas, no geral, vivem um “cotidiano instável” com os mestres, o que não ocorre nas escolas privadas. É o que relata o recém-formado no ensino médio Alef Araújo, de 19. “No 1º ano, a gente ficou sem professor de física o ano todo”, afirma. Ele diz ter consciência de que não aprendeu o conteúdo suficiente e abriu mão da inscrição gratuita do Enem em 2013.
Paula Nascimento também constatou uma baixa aplicação de provas na rotina dos alunos. “No geral, os alunos da escola pública só enfrentam um exame importante em poucas situações, o que pode acentuar o medo em relação ao vestibular”, pontua. Aluna do 3º ano, Tainá Benjamim, de 18, confirma a tese. Ela explica que, no ano passado, a escola teve de se adaptar ao novo sistema de avaliação semestral, em vez de aplicar exames a cada dois meses. “Fiz a primeira prova só em julho”, lembra ela, que também não participou do Enem.
A explicação para a lenta preparação dos vestibulandos tem uma razão matemática. Segundo a doutora, um professor da rede pública de São Paulo, que cumpre 40 horas semanais, chega a assessorar cerca de 1.000 alunos. “Como os professores podem dar conta de corrigir tantos exames e ainda exigir que os alunos respondam a questões dissertativas?”, destaca.
Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação do Ministério da Educação informou que o secretário de Educação Básica, Romeu Weliton Caputo, estava em viagem e só ele estava autorizado a dar entrevistas. Sobre os dados, a pasta informou que “cerca de 90% dos concluintes dessa etapa de ensino estavam inscritos na última edição do Enem ”, sem especificar quantos eram da rede pública e da privada.
Paternalismo prejudicial
A pesquisa da USP também aponta que a participação em atividades como palestras ou feira de ciências vira uma “moeda de troca” por notas. Na turma de 3º ano da estudante Thays Lyege Santos, de 18 anos, quem fazia parte de ensaios da festa junina ganhava três pontos em todas as matérias. A jovem conta que o bom comportamento na sala de aula também podia valer um acréscimo. “A escola parecia utilizar desses artifícios para retirar o peso ‘traumático’ revelando certo paternalismo em relação aos alunos, isentado-os de responsabilidade de seus atos”, destaca a tese de Paula Nascimento.
A especialista em educação também percebeu que o desinteresse pelo Enem se dá pela ideia de que, na universidade pública, só entra quem estudou em escola privada, o que os leva a fazer as provas sem comprometimento com os resultados. Thays participou dos dois dias de exames, conferiu as notas, mas se esqueceu de fazer a matrícula no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que oferece vagas em instituições públicas de ensino superior com reserva para estudantes do ensino público e pelo sistema de cotas.
Proposta de exame em três etapas
A Câmara analisa o projeto de lei que prevê a realização do Exame Nacional do Ensino Médio em três etapas, uma avaliação ao final de cada ano do antigo 2º grau. Pelo texto, do deputado Izalci (PSDB-DF), as duas primeiras provas deverão aferir o conteúdo apreendido pelo aluno. Já o último teste será de aptidão vocacional. As informações são da Agência Câmara Notícias. De acordo com Izalci, a avaliação seriada permitirá que o desempenho do estudante seja gradativamente testado e as oportunidades de progresso decorrentes do exame, aproveitadas de maneira efetiva ainda ao longo do processo de escolarização.
A proposta, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, também prevê que o ensino médio terá, pelo menos, 3 mil horas de aulas, ao longo de, no mínimo, três anos. Segundo Izalci, dessa forma, será possível tornar como regra geral a jornada escolar diária de cinco horas. Essa duração, na opinião do deputado, "é indispensável para o desenvolvimento adequado das propostas pedagógicas dessa etapa escolar".
O texto ainda muda a maneira como as escolas deverão ofertar sociologia e filosofia, que hoje são disciplinas obrigatórias ao longo dos três anos do ensino médio. Pelo projeto, seus conteúdos poderão ser diluídos em outras matérias do currículo. A proposta, que tramita em caráter conclusivo, será analisada pela comissão de Educação; e pela comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.