Durante 60 anos seu Zé mantém a mesma rotina: sai de sua casa no Bairro Paraíso rumo ao Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais, no Bairro Santa Efigênia, na Ragião Leste, para vender seus pastéis. Só mesmo a queda de uma parte do beiral do telhado da instituição foi capaz de alterar essa tradição e tirar a tranquilidade de José Martins da Silva, de 96 anos, cuja presença em uma banca chama atenção dos transeuntes. Sentado em um pequeno banco, ele é o retrato fiel da luta e do vigor da ancestralidade africana.
Seu Zé está de “férias” e diz só ter vivido situação parecida no governo Bias Fortes (1956–1961), quando uma greve teria atrasado o salário dos militares por quatro meses. “Mesmo assim, eu não deixei um filho de militar sair do hospital sem comer pastel. O que eu pude fazer eu fiz”, recorda. Mineiro de Vargem Linda, distrito de São Domingos do Prata, seu Zé foi convocado cedo ao trabalho em fazendas da região antes de chegar a Formiga e se tornar servente e pedreiro, profissões com as quais criou praticamente toda a família. Já em Belo Horizonte, diante da dificuldade de encontrar trabalho, teve a ideia de vender os pastéis que ele e a mulher faziam em casa. À primeira fritada, lá foi seu Zé com sua cesta para o Parque Municipal Américo Renê Gianetti, no Centro, sem saber da proibição de comércio ambulante no espaço público.
Prestativo e educado, o próprio guarda indicou ao pasteleiro a portaria do Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais, em Santa Efigênia, para o serviço. E lá foi ele. Bastou um soldado provar o pastel para que seu Zé adentrasse a instituição e se visse cercado de gente querendo saber o que ele trazia na cesta. “Eles gostaram do tempero e ofereceram para eu ficar vendendo lá”, recorda o pasteleiro, salientando que, de imediato, o retorno financeiro foi maior do que o próprio salário de pedreiro.
O expediente inicial era de 7h às 11h. Encerrado compromisso diário, seu Zé seguia em frente na região para vender pastel. Chegava a ir até uma favela do Bairro Horto, e assim vendia praticamente toda a mercadoria restante. Com o tempo, acabou se fixando no Hospital Militar, onde o próprio chefe da instituição doou-lhe a banca que o mantinha de segunda a sexta-feira no local, de 8h às 16h, antes do fechamento da portaria principal do hospital. Com entradas liberadas apenas nas laterais, seu Zé acabou perdendo a clientela. Resultado: está de férias, em casa, diante do prejuízo por não conseguir fregueses para o petisco. “Fiz muita amizade ali”, reconforta-se, ciente de que a situação pode mudar após as necessárias obras no prédio.
Baú de histórias Figura popular na Regional Leste, a quem pergunta onde mora Seu Zé dificilmente alguém deixa de dar resposta: Rua Cintra de Oliveira, quase no fim da subida do morro, indo pela Rua Euclásio. Lá do alto, diante da vista que se tem da cidade, a impressão é de que estamos a poucos passos do céu. Ou seja, chegamos ao Paraíso, onde seu Zé nos recebe na varanda da casa em companhia de filhos e netos. Sentado ali, ele desenrola o novelo da memória. Antes de chegar a Belo Horizonte, passou por Formiga, ainda na labuta de pedreiro. Foi lá, segundo conta, que teve o privilégio de tirar um “retrato” ao lado do então futuro governador e presidente da República Juscelino Kubitschek, o que por si só é motivo para estampar um largo sorriso no rosto do pasteleiro.
Outro motivo de grande orgulho para o senhor de 96 anos é ter se tornado Cidadão Honorário de Belo Horizonte, em 2006. Da cerimônia na Câmara Municipal, quando lhe foi outorgado o título, não consegue esquecer. “Além da família, foi muita gente. O Comando Geral da PM mandou representante e eu fiquei feliz”, relata. “Me puseram lá em cima do palanque e me deram o microfone”, recorda seu Zé, emocionado. Para se ter ideia do orgulho de ser belo-horizontino, ele mandou fazer a redução do diploma e carrega com outros documentos.
Pai de 12 filhos, 11 deles vivos, o pasteleiro não esconde a admiração pelo mais velho, José Martins Nascimento Silva, de 75 anos, que mora na casa ao lado e de imediato recebe o reconhecimento do pai: “Este me ajudou muito”, diz seu Zé. O primogênito é o detentor da memória familiar e é chamado sempre para esclarecer qualquer dúvida a respeito de nomes e datas. Avô de 15 netos e cinco bisnetos, seu Zé lembra ter estudado apenas até o 2º ano em Vargem Grande, diante do avanço da idade que, como gosta de dizer, “estava chegando”.
As lembranças da Belo Horizonte de outrora são muitas. “Principalmente as do tempo em que eu gostava de dançar no Elite”, relata o ex-boêmio, que percorria o circuito noturno da capital do Centro ao Bairro Pompéia com desenvoltura. “Sempre à procura de uma dança”, diz o fã de ritmos como tango, rumba e bolero, sem deixar de citar a Valsa da meia-noite, peça de domínio público. “A cidade cresceu muito”, reconhece, admitindo que para ele ficou melhor. “Gosto de ter boas amizades para palestrar”, confessa o torcedor do Cruzeiro, que já não vai mais a estádios.
Mas seu Zé gosta mesmo é do presente e diz que, apesar do repouso exigido por causa da pressão alta, “depois que fizer todos os exames” vai voltar a trabalhar. “Devo voltar”, anuncia, na expectativa de ver a portaria principal do Hospital Militar ser liberada para reencontrar a clientela. “Fiz muita amizade ali”. Para chegar diariamente ao local de trabalho, sem maiores esforços, um taxista da região leva seu Zé até o Hospital Militar. “Eles (os taxistas) me chamam de cidadão ordinário de Belo Horizonte”, diverte-se o pasteleiro, que conquistou amigos na região com sua simpatia e simplicidade. Quanto ao segredo do sucesso do petisco, ele fingi revelar : “Carne moída com batatinha. Eu mesmo que faço o recheio”, ressalta o pasteleiro.
Seu Zé está de “férias” e diz só ter vivido situação parecida no governo Bias Fortes (1956–1961), quando uma greve teria atrasado o salário dos militares por quatro meses. “Mesmo assim, eu não deixei um filho de militar sair do hospital sem comer pastel. O que eu pude fazer eu fiz”, recorda. Mineiro de Vargem Linda, distrito de São Domingos do Prata, seu Zé foi convocado cedo ao trabalho em fazendas da região antes de chegar a Formiga e se tornar servente e pedreiro, profissões com as quais criou praticamente toda a família. Já em Belo Horizonte, diante da dificuldade de encontrar trabalho, teve a ideia de vender os pastéis que ele e a mulher faziam em casa. À primeira fritada, lá foi seu Zé com sua cesta para o Parque Municipal Américo Renê Gianetti, no Centro, sem saber da proibição de comércio ambulante no espaço público.
Prestativo e educado, o próprio guarda indicou ao pasteleiro a portaria do Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais, em Santa Efigênia, para o serviço. E lá foi ele. Bastou um soldado provar o pastel para que seu Zé adentrasse a instituição e se visse cercado de gente querendo saber o que ele trazia na cesta. “Eles gostaram do tempero e ofereceram para eu ficar vendendo lá”, recorda o pasteleiro, salientando que, de imediato, o retorno financeiro foi maior do que o próprio salário de pedreiro.
O expediente inicial era de 7h às 11h. Encerrado compromisso diário, seu Zé seguia em frente na região para vender pastel. Chegava a ir até uma favela do Bairro Horto, e assim vendia praticamente toda a mercadoria restante. Com o tempo, acabou se fixando no Hospital Militar, onde o próprio chefe da instituição doou-lhe a banca que o mantinha de segunda a sexta-feira no local, de 8h às 16h, antes do fechamento da portaria principal do hospital. Com entradas liberadas apenas nas laterais, seu Zé acabou perdendo a clientela. Resultado: está de férias, em casa, diante do prejuízo por não conseguir fregueses para o petisco. “Fiz muita amizade ali”, reconforta-se, ciente de que a situação pode mudar após as necessárias obras no prédio.
Baú de histórias Figura popular na Regional Leste, a quem pergunta onde mora Seu Zé dificilmente alguém deixa de dar resposta: Rua Cintra de Oliveira, quase no fim da subida do morro, indo pela Rua Euclásio. Lá do alto, diante da vista que se tem da cidade, a impressão é de que estamos a poucos passos do céu. Ou seja, chegamos ao Paraíso, onde seu Zé nos recebe na varanda da casa em companhia de filhos e netos. Sentado ali, ele desenrola o novelo da memória. Antes de chegar a Belo Horizonte, passou por Formiga, ainda na labuta de pedreiro. Foi lá, segundo conta, que teve o privilégio de tirar um “retrato” ao lado do então futuro governador e presidente da República Juscelino Kubitschek, o que por si só é motivo para estampar um largo sorriso no rosto do pasteleiro.
Outro motivo de grande orgulho para o senhor de 96 anos é ter se tornado Cidadão Honorário de Belo Horizonte, em 2006. Da cerimônia na Câmara Municipal, quando lhe foi outorgado o título, não consegue esquecer. “Além da família, foi muita gente. O Comando Geral da PM mandou representante e eu fiquei feliz”, relata. “Me puseram lá em cima do palanque e me deram o microfone”, recorda seu Zé, emocionado. Para se ter ideia do orgulho de ser belo-horizontino, ele mandou fazer a redução do diploma e carrega com outros documentos.
Pai de 12 filhos, 11 deles vivos, o pasteleiro não esconde a admiração pelo mais velho, José Martins Nascimento Silva, de 75 anos, que mora na casa ao lado e de imediato recebe o reconhecimento do pai: “Este me ajudou muito”, diz seu Zé. O primogênito é o detentor da memória familiar e é chamado sempre para esclarecer qualquer dúvida a respeito de nomes e datas. Avô de 15 netos e cinco bisnetos, seu Zé lembra ter estudado apenas até o 2º ano em Vargem Grande, diante do avanço da idade que, como gosta de dizer, “estava chegando”.
As lembranças da Belo Horizonte de outrora são muitas. “Principalmente as do tempo em que eu gostava de dançar no Elite”, relata o ex-boêmio, que percorria o circuito noturno da capital do Centro ao Bairro Pompéia com desenvoltura. “Sempre à procura de uma dança”, diz o fã de ritmos como tango, rumba e bolero, sem deixar de citar a Valsa da meia-noite, peça de domínio público. “A cidade cresceu muito”, reconhece, admitindo que para ele ficou melhor. “Gosto de ter boas amizades para palestrar”, confessa o torcedor do Cruzeiro, que já não vai mais a estádios.
Mas seu Zé gosta mesmo é do presente e diz que, apesar do repouso exigido por causa da pressão alta, “depois que fizer todos os exames” vai voltar a trabalhar. “Devo voltar”, anuncia, na expectativa de ver a portaria principal do Hospital Militar ser liberada para reencontrar a clientela. “Fiz muita amizade ali”. Para chegar diariamente ao local de trabalho, sem maiores esforços, um taxista da região leva seu Zé até o Hospital Militar. “Eles (os taxistas) me chamam de cidadão ordinário de Belo Horizonte”, diverte-se o pasteleiro, que conquistou amigos na região com sua simpatia e simplicidade. Quanto ao segredo do sucesso do petisco, ele fingi revelar : “Carne moída com batatinha. Eu mesmo que faço o recheio”, ressalta o pasteleiro.