Do ateliê do grupo, na capital, onde foi feito todo o serviço, a imagem seguirá, na próxima semana, para o município a 84 quilômetros da capital. Com larga experiência na área e trabalhos feitos em imaginária e retábulos de todo o país, Ramos se diz impressionado com a beleza da peça de cedro. Curiosamente, como ocorre com a maioria dos acervos de igrejas, ele explica, não havia cupins, embora apresentasse sinais de maus-tratos, a exemplo de repinturas inadequadas, feitas possivelmente no início do século passado, perda em alguns pontos, os quais estavam descascando, e até falta de dedos numa das mãos. “Foram quatro meses de trabalho e percebemos logo que se tratava de uma obra de arte. É um objeto de devoção para os moradores católicos e um tesouro para a comunidade.”
Na tarde de ontem, os restauradores Mauro Souza e Marçal Rosa davam os últimos retoques na imagem do santo, que, conforme a lenda, seria festeiro por excelência. “Sob o braço esquerdo, ele tem um livro, que estava todo pintado e foi recuperado, tendo de volta o vermelho da capa e o dourado das letras”, diz Ramos, lembrando que o cajado, seguro pela mão direita, foi igualmente recuperado e se apoia num orifício no chão. Um outro buraquinho na base denota que ali se apoiaria uma viola, que, conforme as lendas em torno da vida de São Gonçalo, simbolizaria o seu espírito festeiro.
“Enquanto fomos restaurando a peça, sentia minha forças e energia renovadas. É das imagens mais bonitas que já vi e espero que a população da cidade se emocione”, observa Mauro, lembrando que foram retiradas as tintas branca, da túnica, e preta, do manto, que desfiguravam a escultura que teve patrocínio da empresa Vale no restauro. “Felizmente, a madeira foi repintada e não raspada”, diz Adriano, que aponta na superfície dourada os “esgrafiados”, fruto de uma técnica sofisticada que consistia na aplicação de uma tinta sobre o folheado a ouro: “Antes de a tinta secar, o artista a removia formando os desenhos desejados”.
Campanha
Satisfeito e na maior expectativa como retorno, o titular da Paróquia de São Gonçalo, vinculada à Diocese de Itabira, padre Fernando dos Santos Andrade, adianta que haverá comemoração às 19h do dia 21, com missa, bênção e apresentação do coral Sagrado Coração de Jesus. Na ocasião, ele vai lançar a campanha para recuperar os altares da matriz, atribuídos a Servas – ele teve um ateliê em São Domingos do Prata – e estão cobertos de tinta branca.
O Grupo Oficina de Restauro já fez o projeto e Ramos, pelas prospecções feitas, está certo de que os elementos artísticos têm douramentos e marmorizados nos tons azul e rosa. “Vamos unir forças com a comunidade para levar o nosso objetivo adiante. Confiamos nas empresas para nos ajudar a valorizar o patrimônio”, diz padre Fernando. Para ele, a recuperação das peças sacras significa evangelização. “Desde o seminário, me preocupo com a preservação da arte sacra e temos aqui um acervo ímpar, além de alarmes nas portas e janelas para evitar furtos”, ressalta o pároco.
Santo festeiro e peregrino
São Gonçalo do Amarante nasceu no início do século 13, na aldeia de Ariconha, distrito de Guimarães, em Portugal. Filho de nobres, recebeu uma educação exemplar, norteada por um sacerdote. Já adulto, tornou-se também sacerdote e viajou em peregrinações religiosas a Roma, Itália, onde visitou os túmulos de São Pedro e São Paulo. Na sequência, visitou os lugares santos em Jerusalém. Mais tarde, fixou-se num lugarejo pouco habitado, hoje cidade de Amarante, à margem direita do Rio Tâmega, e por volta de 1250 construiu uma capelinha dedicada a Nossa Senhora da Assunção. Logo depois, São Gonçalo se refugiou como eremita e passou a viver em penitência e mortificações. Segundo a história, teria recebido uma visita milagrosa da Virgem Maria, que o aconselhou a entrar para o Mosteiro de São Domingos, em Guimarães.
Também está ligado à vida do santo o milagre da construção de uma ponte sobre o Rio Tâmega, que representava uma séria ameaça aos que se arriscavam a atravessá-lo. Durante o serviço, o santo “fazia rolar pedras enormes e delas extraia vinho para os operários”. É representado quase sempre com o hábito da ordem dominicana, tendo como atributos o cajado ou bordão de peregrino, livro, peixes nas mãos ou a seus pés e uma ponte ao fundo. Em algumas representações, especialmente nas esculturas, como a de São Gonçalo do Rio Abaixo, a ponte pode aparecer servindo como base.
As festas de São Gonçalo se destinam à resolução de problemas de casamento de mulheres velhas, esterilidade e colheitas. A dança é feita para se pagar uma promessa ou como recompensa para uma graça alcançada. As celebrações podem ser em qualquer época, dependendo da promessa – inclusive é comum aproveitar a noite de São João. Atualmente, em Minas, a festa de São Gonçalo continua em estado quase amortecido, sendo que alguns exemplos persistem especialmente ao norte do estado. Reza a lenda que o santo é festeiro, por isso mesmo tem ao seu lado uma viola.