Estudioso de tema tão polêmico há mais de 20 anos e autor de vários livros, o professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Eduardo França Paiva conta que os escravos desenvolveram autonomia e até ajuizaram ações contra os seus proprietários, quando se sentiam lesados. Muitas vezes levaram a melhor no tribunal, ao defender, por exemplo, que já haviam pago todas as parcelas de compra de sua liberdade, algo que o senhor contestava. “O equívoco maior é pensar que os cativos foram vítimas o tempo todo. O 13 de maio de 1888, lembrado amanhã, data em que a Princesa Isabel (1847-1871) assinou a Lei Áurea e extinguiu a escravidão no Brasil, serve para discutir o assunto e corrigir uma série de distorções, muitas delas construídas pelos abolicionistas”, diz o professor, que segue na próxima semana para Sevilha, Espanha, onde fará o segundo pós-doutorado, desta vez sobre as Américas portuguesa e espanhola.
Nas suas pesquisas, o professor Eduardo, que atua nas áreas da história da escravidão e das mestiçagens, vem fazendo descobertas surpreendentes. Uma das mais importantes se refere aos senhores de escravos que, ao contrário do que se aprende na escola e nos livros didáticos, nem sempre eram brancos. Em Minas, do início do século 18 a meados do 19, mais de 30% desses proprietários eram ex-escravos ou descendentes de escravos. Em 1776, conforme as estimativas, havia na capitania de Minas, então a mais rica e populosa da colônia, com um comércio conectado com o mundo e efervescência social e cultural, cerca de 300 mil habitantes, sendo 130 mil forros (ex-escravos), 110 mil escravos e 60 mil brancos.
“Havia em Minas mais ex-escravos do que escravos, a maior parte mulheres”, afirma o professor, explicando que somente a partir da segunda metade do século 19, a escravidão passou a ser condenada. “Até então, era legal e legítima, e os cativos prezavam dois valores fundamentais: queriam ser livres e proprietários de escravos. Os castigos físicos eram comuns nesses tempos de patriarcado, em que os pais batiam muito nos filhos”, diz o autor de vários livros, entre eles Escravidão e universo cultural na colônia, editado pela UFMG, e Escravos e libertos nas Minas Gerais do século 18, da coleção Olhares/UFMG/Annablume.
Fortuna
Entre as personagens mais importantes encontradas nas pesquisas está Bárbara Aleluia –negra filha de africanos, nascida no Brasil –, uma pernambucana que viveu em Sabará. “Ela foi uma das mulheres mais ricas da época, acumulou fortuna com o comércio e outras atividades”, revela. Pinturas ainda desconhecidas da maioria dos brasileiros mostram negras cobertas de joias e usando trajes típicos, a exemplo das mulheres africanas, ou andando pelas ruas com seu séquito. Num livro, Eduardo mostra o retrato de uma baiana, uma negra enriquecida, que posa em estúdio com seus colares de ouro.
Em Minas, com uma sociedade mais urbana, a situação era bem diferente da encontrada ao Norte da América Portuguesa. “Aqui havia muitos senhores de poucos escravos, em média cinco para cada um, bem diferente de Pernambuco e Bahia, com 30 por um. Outro diferencial mineiro é que nem todos os proprietários eram ricos”, diz o professor, explicando que, por volta de 1730, a mineração de ouro já estava em decadência, embora a economia se mantivesse forte e dinâmica, com um comércio influente e produção agrícola em ascensão. Esse quadro favorecia a compra da liberdade.
Para conseguir o seu objetivo, o cativo tinha que ser, antes de mais nada, um bom negociador, o que significava um acordo com o seu dono sobre a forma de pagamento. Quem não ganhava a alforria em testamento ou na pia batismal, podia pagá-la parceladamente, num período de quatro a cinco anos, em prestações semestrais, num sistema denominado coartação –nesse tempo, o chamado coartado ficava longe do domínio cotidiano de seu proprietário. Outra forma de ficar livre era pagando à vista. “O dinheiro para saldar o débito era obtido de diversas formas. As mulheres dominavam o pequeno comércio, vendendo, nas ruas, doces, sucos, carnes e outros produtos. Eram muito comuns, nessa época, as ‘negras de tabuleiro’, que, como mostram também gravuras antigas, saíam pelas vilas e arraiais vendendo comidas. A prostituição era outro caminho para alcançar a liberdade”, conta. O artista italiano Carlos Julião (1740-1811) pintou aquarelas retratando a vida dos recém-chegados da África – e chamados de boçais por não saberem falar a língua portuguesa – e dos enriquecidos.
Um dos objetivos do professor é tirar dos escravos e forros o perfil exclusivo de vítimas e dar-lhes a dignidade de quem construiu sua liberdade e ajudou na edificação do país. “No Brasil, o cenário de escravos amarrados ao tronco, sendo chicoteados, é fortemente panfletário, embora o castigo físico tenha existido em toda a colônia. Enquanto os escravos foram efetivamente agentes da história, a historiografia brasileira contemporânea continua repetindo discursos abolicionistas, o que significa exagerar no grau de violência praticado pelos senhores”, diz o professor, convicto da necessidade de maior aprofundamento das pesquisas.
Primeiras leis
Para quem pensa que todo negro na colônia era escravo, o professor esclarece que nem todo escravo era negro”. Mulatos, pardos e cabras (descendentes de negros e índios também eram escravos. E por que essa diferença? Eduardo conta que, no século 18, os “negros de corte”, a exemplo de alguns nobres do reino do Congo, iam estudar em Lisboa, Portugal, ou Salvador, na Bahia. Igualmente livres eram também alguns africanos que trabalhavam nos chamados navios negreiros que cruzavam o Oceano Atlântico. Em 1830, surgem as primeiras leis que proibiam o tráfico de negros determinando que todo africano que pusesse os pés no território brasileiro deveria ser considerado livre.
“O equívoco maior é pensar que os cativos foram vítimas o tempo todo. O 13 de maio serve para discutir o assunto e corrigir uma série de distorções, muitas delas construídas pelos abolicionistas” Eduardo França Paiva, professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Linha do tempo
Século 16 – Começa a escravidão no Brasil e os índios são os primeiros a trabalhar nesse sistema. Os negros africanos chegam à colônia na segunda metade do século
Século 18 – O sistema começa em Minas, sendo escravos os negros, mulatos, pardos e cabras (filhos de negros com índios)
1830 – Entram em vigor as primeiras leis proibindo o tráfico atlântico de escravos. Todo africano que chegasse ao território brasileiro deveria ser considerado livre
1850 – Em 4 de setembro, é aprovada a Lei Eusébio de Queirós, que põe fim ao tráfico negreiro
1871 – Em 28 de setembro, é promulgada a Lei do Ventre Livre, que considerava livres todos os filhos de escravas nascidos a partir daquela data
1885 – Em 28 de setembro, é promulgada a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe, que garantia liberdade aos escravos com mais de 60 anos
1882 e 1885 – Em Minas, são criadas a Sociedade Abolicionista de Ouro Preto e a Beneficente Associação Marianense Redentora dos Cativos, que promoviam a emancipação dos escravos _
1888 – Em 13 de maio, a Princesa Isabel sanciona a Lei Áurea, que extingue a escravidão no Brasil
Arturos em festa
A tradicional comunidade dos Arturos, de Contagem, na Grande BH, celebra neste fim de semana a Festa da Abolição. Hoje, às 18h, tem concentração das guardas de Congo e Moçambique, na Rua da Capelinha, 50, no Bairro Jardim Vera Cruz. Às 18h30, haverá cortejo das guardas em direção à Matriz de Nossa Senhora do Rosário, no Bairro Alvorada, seguindo-se celebração eucarística (19h30) e levantamento de mastros na Casa da Cultura/Museu Histórico, na matriz e na comunidade (20h30). Amanhã, a programação começa às 4h, com a Festa da Matina ou Dança que chama o sol , na Rua Capelinha, 50, e segue até as 22h com desfiles, missas, encenações e celebrações. A comunidade negra Arturos descende de Camilo Silvério da Silva, que, em meados do século 19, chegou ao Brasil num navio negreiro vindo de Angola. Em Minas, trabalhou num povoado na Mata do Macuco, antigo município de Santa Quitéria, hoje Esmeraldas.