Iraí de Minas, Nova Ponte, Santa Juliana, Uberaba e Uberlândia – As previsões apocalípticas de guerras pela água parecem fazer parte de um futuro distante, mas aqueles que podem ser seus primeiros sinais já se fazem sentir muito mais perto do que se imagina. O leiturista John Hebert Espíndola, de 27 anos, não pensa nisso quando sobe na motocicleta, às 6h30, papel, prancheta e caneta a tiracolo, para anotar os números indicados em réguas e pluviômetros. Mas sabe que, pelas próximas horas, a população de três cidades depende de suas análises precisas. Por isso, a cada dia o jovem roda 306 quilômetros entre Iraí de Minas, Nova Ponte e Romaria, no Triângulo Mineiro, fazendo medições em 23 pontos nos rios Santa Fé, Bagagem, Mandaguari e afluentes. Ao primeiro sinal de diminuição dos níveis, é preciso lançar o alerta a todos os integrantes da Associação Regional dos Usuários da Bacia Hidrográfica do Rio Bagagem e Afluentes. Após o alarme, para usar o recurso hídrico, só em esquema de revezamento. Esse é apenas um reflexo da batalha por água que vem sendo travada em uma das regiões economicamente mais ricas do estado, banhada pela bacia do Rio Paranaíba. Nela, interesses diversos se confrontam e a necessidade de abastecimento dos centros urbanos, somada à deterioração da qualidade da água e ao consumo para irrigação, motiva disputa na região onde foram registrados quase 60% dos conflitos pela água em Minas.
Uma área é declarada em conflito pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) quando a demanda em determinado trecho é maior do que a capacidade do rio de oferecer abastecimento. Nesse caso, as autorizações para uso só podem ser concedidas coletivamente a uma associação de usuários, que combinam como vão consumir o recurso de acordo com a necessidade de cada um e a capacidade da bacia. Nesses processos são feitas adequações como captação em dias e horários alternados, sempre levando em conta que o abastecimento para consumo humano é prioridade. Em todo o estado há 39 áreas em disputa, 23 delas na bacia do Paranaíba. No caminho do rio – que nasce na cidade de Rio Paranaíba, em Minas, e percorre cerca de 1,16 mil quilômetros até o encontro com o Rio Grande –, o confronto por água já é uma realidade.
As características da bacia explicam o motivo: ela pertence à Região Hidrográfica do Paraná, da qual é a segunda maior unidade, com 25,4% de sua área, abrangendo parte dos estados de Goiás (65%), Minas (30%), Distrito Federal (3%) e do Mato Grosso do Sul (2%). A água atende a necessidades que vão desde o básico, o consumo humano, até a garantia das atividades econômicas, principalmente a agropecuária. A população da região é de cerca de 8,5 milhões de habitantes, mais de 90% em áreas urbanas.
Cerca de 78% da população conta com rede de água, mas a coleta de esgoto chega para apenas 59%. Pior: somente 21,7% dos dejetos coletados são tratados. Se nada for feito, a tendência é piorar. Projeções indicadas pelo comitê da bacia dão conta de que, até 2020, a população saltará para mais de 18 milhões de habitantes. Uma pressão agravada por resíduos da agricultura e pela destruição das matas ciliares. “Prevemos impacto no recurso hídrico, com maior consumo. O esgoto vai aumentar também”, afirma o presidente do Comitê da Sub-bacia do Rio Araguari, Wilson Shimizu. “Estamos pressionando o rio numa velocidade e intensidade grandes, não dando a ele tempo de se recuperar. Temos ainda uma situação folgada, mas chegará a um ponto insustentável.”
Pivôs
Na região rica em agropecuária, a irrigação é outro ponto forte e os pivôs, estruturas para irrigar grandes áreas, se tornaram motivo de preocupação. É o que ocorre em Iraí de Minas, a 466 quilômetros de BH, onde o plano de contenção acompanha o índice pluviométrico e prevê rodízio e limitação dos pivôs. “Se houver problemas, os produtores são avisados, para ninguém ser pego de surpresa. Precisamos ter água sempre e garantir que o pessoal rio abaixo não fique sem”, conta o leiturista John Espíndola.
Na cidade vizinha de Santa Juliana, o acordo para tentar conter a pressão sobre as águas do Ribeirão Santa Juliana também está sendo fechado, mas as chuvas inesperadas de maio e junho adiaram uma solução mais drástica. Em Uberlândia, o Rio Uberabinha, além de sofrer com a poluição, não dá mais conta de abastecer o município. Em Uberaba foi preciso contar com a outorga concedida pela cidade de Sacramento para explorar o Rio Claro nos períodos críticos de seca. Mas a solução não agradou os moradores do município concedente, que defendem que a autorização para uso da água seja revertida para o Rio Grande, na Bacia de mesmo nome.
Propostas para esfriar o conflito
A força que corre rio abaixo carrega a fórmula da vida. De lá sai o líquido para beber, plantar e produzir. Porém, na Bacia do Rio Paranaíba, em parte do Triângulo Mineiro, sinais diários indicam que a fartura é apenas aparente e, por isso, beber, plantar e produzir deixam de ser um ciclo harmonioso para virar disputa pelo elemento central dessa história: a água. Para resolver o problema e impedir que a escassez se espalhe, o comitê da bacia e a Agência Nacional das Águas (ANA) formaram uma câmara técnica com o objetivo de propor linhas de gestão do conflito. O caminho será restringir o uso múltiplo do recurso hídrico e definir quanto cada um poderá gastar por dia, durante quantas horas, em que período, quanto pagará, entre outros aspectos.
A câmara discutirá ainda a questão das unidades de conservação nos estados componentes da bacia, fator importante na preservação dos cursos d’água e da biodiversidade, além de ações para recompor as áreas de preservação permanente. “Sempre se deve ter em mente que sustentabilidade se consegue com viabilidade ambiental, econômica e social. Não é derrubando árvores e invadindo nascentes que chegaremos lá. Também não é acabando com a atividade industrial, nem acabando com o agronegócio ou o pequeno produtor, mas sim com a gestão de todos os usos dos recursos”, afirma o secretário-executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paranaíba e presidente da Sub-bacia dos Afluentes Mineiros do Baixo Paranaíba, Nilo André Bernardi Filho.
Ele chama ainda a atenção para outro tipo de conflito – o da geração de energia. Na bacia do Paranaíba ela ultrapassa 7 mil MW em 19 usinas, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico – sem contar o potencial de geração, já na conta de futuras centrais hidrelétricas. Para Nilo Bernardes, elas levantam a discussão sobre dois aspectos: de um lado, a energia elétrica necessária à vida do homem e, de outro, o impacto nos ecossistemas atingidos. “Ocorre mudança da temperatura na área de entorno da represa construída. Em algumas ocasiões, as comunidades ribeirinhas sofrem com a quantidade de água que é liberada na geração ou no controle do nível de segurança da barragem, que traz destruição às proximidades do leito. Os peixes também têm seu caminho natural bloqueado, entre outros problemas.”
Protesto
Em Ituiutaba, a luta dos moradores é para não deixar esses problemas se tornarem a realidade nas águas cristalinas e ricas em argila do Rio Tijuco, orgulho do município localizado a 676 quilômetros de BH. O potencial para instalação de oito pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) tem tirado o sono da população, que já se pronunciou contra o empreendimento, em sintonia com parecer do comitê. Entre as grandes preocupações estão o fim do Parque da Reserva da Vida Silvestre, que protege as calhas dos rios, e o prejuízo à fauna local. Projetos preveem instalação de duas PCHs a 10 quilômetros e a 16 quilômetros do ponto de captação da água para a cidade.
Está marcado para ocorrer em duas semanas um seminário com representantes de diversos setores da sociedade, para formular um documento que será enviado ao governador Antonio Anastasia pedindo o fim do projeto. “Essa outorga vai estragar a água que bebemos, pois ela não chegará com qualidade. Há estudos comprovando que os microorganismos serão modificados. Estamos diante de uma grave ameaça”, alerta a conselheira do Comitê dos Afluentes Mineiros do Baixo Paranaíba, Cristina Garvil.
Corredeiras
Fruto de quase 7 mil quilômetros de expedição, a série Rios de Minas mostra a asfixia de nossas águas desde domingo, quando reportagem revelou a situação de pescadores que tiveram que virar areeiros no assoreado São Francisco. Na segunda-feira, as razões da decadência do Velho Chico foram mostradas por meio de seus maiores afluentes, Velhas e Paraopeba, tomados pelo esgoto de 4,5 milhões de pessoas. Valadares e as cidades do Vale do Rio Doce que passam sede à beira de mananciais poluídos foram tema da terceira reportagem da série, que na quarta-feira mostrou os contrastes da bacia do Rio Grande, dona do pior e dos melhores indicadores de água do estado. Ontem, o EM denunciou o sumiço de rios no Vale do Jequitinhonha e mostrou a esperança que chega com anúncio de R$ 75 milhões para a Pampulha, na bacia do Velhas.