Era manhã de 18 dia de abril de 2012 e Ana Paula Garcia da Silva, de 30 anos, foi do céu ao inferno em poucas horas. Grávida do primeiro filho, Ana foi vítima, segundo denuncia, de agressões físicas e verbais cometidas por uma equipe médica de uma maternidade particular de Belo Horizonte. Onde esperava aconchego e respeito, ela ouviu palavras rudes, passou por procedimentos que não queria, sentiu-se humilhada e violada. E pior: saiu de lá sem sua menina, Mariana, que morreu 55 minutos depois de nascer. “Não consideraram os meus direitos. Deram-me anestesia à força. Os médicos faziam o que queriam e depois sumiram, sem me dar explicações. Tudo o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara como práticas claramente prejudiciais no parto foi aplicado a mim”, lamenta, revoltada.
Mas Ana Paula não está sozinha. Um grupo de mulheres que passaram pelo serviço de obstetrícia particular ou público no Brasil e se sentiram de alguma forma desrespeitadas está saindo do anonimato e se unindo para exigir mudanças reais. Em Minas Gerais, cansadas de esperar resposta dos órgãos de saúde, elas resolveram levar o caso à Comissão Estadual de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Na quarta-feira, participarão de audiência pública sobre o tema. Com o nome Violência no parto, o movimento acionou entidades médicas do estado e o Ministério Público para abrir o debate, que promete trazer à tona polêmicas que há anos estão em silêncio.
A ONU Mulheres, braço da Organização das Nações Unidas para igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, está convidando indivíduos, organizações, grupos e redes para enviar observações por escrito sobre injustiças e violações dos direitos das mulheres em todo o mundo. O prazo para o envio pelo site
https://www.unwomen.org/csw/communications-procedure-es é quarta-feira. O processo de comunicação tem como objetivo identificar as tendências emergentes na injustiça e práticas discriminatórias, a fim de formular políticas públicas.
Insatisfeitas
Engrossando o coro, as mulheres carregam a tiracolo pesquisas nacionais que comprovam os abusos cometidos nas instituições durante os partos. Um deles, feito em 2010, é da Fundação Abramo e aponta que uma em cada quatro brasileiras sofreu algum tipo de violência durante a assistência obstétrica. As reclamações mais citadas são exame de toque doloroso, negativa para alívio da dor, falta de explicação para os procedimentos adotados e humilhações diversas. Outra análise, mais recente, é da pesquisadora de pós-graduação do Programa de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Ana Carolina Franzon. Trata-se de uma ação de blogagem feita por ela este ano, que apontou: metade das mulheres que respondeu ao teste, aplicado na internet por meio de 75 blogs, disse estar insatisfeita com o atendimento obstétrico que receberam.
“Obtivemos 2 mil respostas e a insatisfação estava relacionada à primeira vez de dar à luz. Outro estudo que fizemos, em 2008, mostrou que há quatro tipos de violência obstétrica: física, verbal, negligência e abuso sexual. O que mais ocorre é a ridicularização da individualidade da mãe. Há médicos que dizem: ‘Na hora de fazer, não doeu’. Há a banalização da dor”, observa, acrescentando que nenhum paciente pode sofrer qualquer tipo de violência dentro de uma instituição de saúde. “É uma infração aos direitos humanos. Quando isso for considerado violência contra a mulher, teremos uma arma para lutar”, diz Ana Carolina. Ao exemplificar uma dessas coações, a pesquisadora compara que no Sistema Único de Saúde (SUS) a equipe médica faz de tudo para não adotar a cesariana, mesmo que a paciente implore. “Já no privado ocorre o contrário: mesmo elas implorando pelo parto normal, eles optam pela cesárea.”
A produtora cultural Lis Brasil é vítima de uma dessas violências. “Os médicos querem apressar tudo, para que o procedimento seja conveniente e os leitos, desocupados. São exames doloridos, nos dão o hormônio ocitocina sem a nossa permissão, e dizem que é para dilatar mais rápido. Já a episiotomia, que é um corte na vagina, é um procedimento invasivo e desnecessário, é uma mutilação ao corpo da mulher”, comenta Lis, acrescentando que essas práticas não são recomendadas pela OMS. “Somos tratadas como um pedaço de carne, ninguém quer saber o seu nome”, reclama Lis.
Métodos devem ser revistos
A classe médica reconhece que há procedimentos desnecessários na assistência ao parto. Segundo o primeiro secretário da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais, Frederico Peret, métodos antes considerados de rotina estão sendo revistos. “Há momentos em que essas intervenções são necessárias. O corte na vagina, por exemplo, só deve ser usado em situações que facilite a saída do bebê. Isso corresponde a 20% dos casos”, diz, acrescentando que a ocitocina só deve ser usada quando o trabalho de parto estiver prolongado. “Precisamos rever alguns métodos, mas um dos maiores problemas é a falta de informação da paciente, que deve ser dada pelo seu médico.”
Conforme o presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares, a obstetrícia é a área mais denunciada no órgão. Ele é enfático ao afirmar que nenhum profissional pode conduzir um procedimento que a paciente não queira. “Mas o corte na vagina é consagrado mundialmente, facilita a descida do bebê”, defende, contando que, muitas vezes, as pacientes sem a presença do marido, menores de idade ou com distúrbios mentais são as que mais gritam no parto. “Elas têm que colaborar”, frisa.
Sobre a pouca humanização nas maternidades brasileiras, João Batista justifica dizendo que as unidades estão sobrecarregadas e, com isso, a paciência dos profissionais diminui. “Não é justificativa para os abusos, mas é a realidade. Hoje o paciente é impaciente. Para ter uma ideia, 80% dos partos são cesarianas porque as mulheres querem e, aí, o médico acha bom pela conveniência”, afirma.