Por R$ 2.880 por mês, um restaurante do Bairro Riacho, em Contagem, na Grande BH, tem à disposição uma tropa de 12 policiais militares para fazer sua segurança durante o almoço e o jantar. É esse o valor das refeições diárias que o estabelecimento serve aos militares da região, com o objetivo de manter os ladrões afastados com a presença da PM. O combinado com o batalhão local, segundo o proprietário, que só concordou em falar na condição de anonimato, já dura 12 anos e garante a tranquilidade dos 700 frequentadores nos dias de semana e de cerca de 1.200 fregueses aos fins de semana. A despesa pode parecer grande, mas, se fosse contratar apenas um vigilante treinado, a empresa gastaria, em média, R$2.500 para que ele trabalhasse oito horas diárias, fora a alimentação, que ficaria em torno de R$ 240. A estimativa foi obtida pelo Estado de Minas junto ao Sindicato dos Vigilantes do Estado de Minas Gerais.
Além das refeições gratuitas e do suco que recebem no almoço e no jantar, os militares não precisam se preocupar nem com o estacionamento. O restaurante guarda uma vaga especialmente para seus parceiros, com as cores e a logomarca da PM e os dizeres: “Reservado: Polícia Militar de Minas Gerais". "Servimos almoço para seis policiais e jantar para outros seis. Temos um grande fluxo de clientes e acho que isso justificaria a presença constante dos militares. Aí, para colaborar, damos a eles o mesmo que os nossos funcionários recebem, que é o self-service e um refresco”, conta o proprietário da casa.
Os dois militares se despedem de garçons e balconistas, passam direto pelos caixas, cumprimentam com apertos de mãos os porteiros e vão embora. Dez minutos depois nova viatura chega, seus ocupantes estacionam no local reservado e refazem todo o ritual, num movimento que se repete entre as 11h30 e as 14h, todos os dias.
O trato
Tudo começou por causa dos assaltos. O proprietário conta que, no início, a rua do restaurante era muito erma e por isso poucos policiais passavam por lá. O primeiro roubo ocorreu no ano 2000. Era hora do jantar quando de seis a oito bandidos armados se misturaram aos clientes. “Havia pouco movimento, com umas quatro mesas ocupadas e uns 15 funcionários. Os ladrões renderam todo mundo com revólveres, deram coronhadas em funcionários e no meu irmão, que é meu sócio”, lembra. Os assaltantes levaram dinheiro, celulares e trancaram todos no almoxarifado. Pouco mais de um mês depois, mais um assalto ocorreu, dessa vez com quatro criminosos, na hora do almoço.
Farto dos assaltos e da ameaça à própria segurança, o dono do restaurante foi ao batalhão local conversar com o comandante, que era tenente-coronel. “Ele (o comandante) me falou: “O que vamos fazer é errado. Não pode, mas como vai muita gente ao seu restaurante, vamos fazer.” Foi assim que combinaram receber seis policiais fardados, de serviço e somente do batalhão para almoçar e outros seis para o jantar, todos os dias. “A gente sabe que se beneficia, porque a avenida é mais erma e não tem tanto comércio que justifique muito policiamento. Tanto que não teve mais nenhum assalto aqui depois que começamos a fornecer alimentação para a polícia. Bom para a nossa segurança e para a dos nossos clientes”, admite.
Rede de vizinhos desprotegidos
Se a presença da polícia torna mais seguros os estabelecimentos que fornecem alimentação, sobremesas e outros mimos aos militares, os demais comerciantes, que não têm nada a oferecer, reclamam de estar sendo abandonados pela segurança pública. A apenas cinco quarteirões do restaurante de Contagem que oferece vaga de estacionamento e alimentação para a Polícia Militar, a lanchonete de sucos naturais e vitaminas da empresária Talita Garcia Paiva não tem sossego. Nos últimos dois meses, o estabelecimento foi arrombado e roubado duas vezes. Em cada uma dessas vezes os ladrões levaram um resíduo de dinheiro do caixa, estimado em R$ 200, e danificaram a estrutura do estabelecimento.
“À noite a avenida fica deserta e insegura mesmo”, diz a empresária. Ela critica a falta de policiamento e o aliciamento dos militares por outros comerciantes. “Não posso dar nada para a polícia, porque senão meu lucro vai embora e tenho de fechar as portas. Não é justo que o policiamento, que é público, fique concentrado onde os donos de grandes estabelecimentos dão vantagens para os policiais. E nós? Vamos ficar desprotegidos”, reclama.
Dono de um armazém no Bairro Santa Inês, Região Leste de BH, a apenas quatro quarteirões de uma padaria que permite que os policiais consumam o que quiserem, Rodrigo Júnior Ferreira é outro que discorda desse tipo de permuta. "Não conheço quem dá comida ou produtos para os policiais em troca de segurança, mas acho isso completamente errado. Não se pode privatizar a segurança pública. Então quem tem mais dinheiro paga e fica com a polícia e quem não tem condições fica abandonado? Isso não pode", critica. O comerciante conta que há poucos meses foi assaltado. Farto de tanta insegurança, sua saída foi instalar câmeras de vigilância, alarmes de segurança e grades de metal para impedir a entrada dos bandidos. Ainda assim, ele considera que a polícia do bairro faz um bom trabalho, dentro de suas limitações. “Não podem é parar de olhar a todos para ver só o lado de quem dá alguma coisa”, considera.
Ladrões atacam quando PMs saem
A presença de policiais militares em frente a estabelecimentos comerciais, atraídos pelo fornecimento gratuito de refeições, nem sempre impede que essas lojas, padarias e restaurantes sejam vítimas de assaltantes. Foi o que ocorreu na Padaria Trigo Dourado, na Rua Conceição do Mato Dentro, no Bairro Ouro Preto, Região da Pampulha. Só nos últimos 45 dias as caixas registradoras foram alvo de quatro assaltos à mão armada em que os bandidos levaram entre R$ 1 mil e R$ 800, conta a gerente da panificadora, Andressa Gonçalves.
“Durante o dia damos salgados, pães e lanche para qualquer policial que vem aqui. É nossa tentativa de mantê-los por perto e os bandidos afastados. Só que não tem dado certo. Os ladrões esperam os policiais saírem e nos assaltam”, conta. Os roubos são rápidos, violentos e já contabilizam prejuízos que vão além do dinheiro levado. “São crimes que nos assustam. Uma menina do caixa passou mal quando viu os revólveres. Outra desmaiou. Teve gente que pediu demissão e cliente que falou que não voltava mais aqui”, descreve a gerente. “Um dos ladrões nos assaltou duas vezes. Esperou um tempo para esquecermos a cara dele e depois apareceu de novo”, cobra.
No Bar e Restaurante do Manuel, no Bairro Ipanema, Região Noroeste de BH, a presença dos policiais se servindo no almoço, jantar e lanche sem pagar nada por isso é tão antiga que se tornou uma espécie de tradição. Ao ponto de ninguém mais questionar sua legitimidade. Apesar dessa camaradagem, os assaltos persistem, afirma o gerente, Roberto Vieira Sousa. “Faz uns seis meses que um homem entrou armado aqui e foi direto ao caixa. Pediu o dinheiro que tínhamos e foi embora com tudo. Na hora não tinha polícia por perto”, disse.
Contudo, o funcionário diz que não há intenção de cessar o fornecimento de alimentação para os militares. “É uma coisa que já acontece há muito tempo. A gente já se acostumou e é até amigo dos policiais que ficam aqui com a gente", pondera. Ainda assim ele considera que o ideal seria uma presença mais constante dos militares nas ruas do bairro para inibir pessoas suspeitas.
Comandante da PM: “É inadmissível”
A Polícia Militar indicou os comandos da 1ª Região Militar, responsável por Belo Horizonte, e da 2ª Região Militar, que coordena Contagem, para comentar a situação dos policiais que permutam segurança especial por alimentação e outros benefícios. Procurado, o comando de Contagem não se manifestou. Já o comandante do Policiamento da Capital (CPC), coronel Rogério Andrade, classificou esse tipo de conduta como “inadmissível”. Se tivermos informações que nos levem a identificar quem fez isso, eles serão punidos como indica nosso Código de Ética e o Código de Justiça Militar”, disse. “Os comerciantes que estejam sofrendo algum tipo de constrangimento devem denunciar os autores para o comando do batalhão, para a Corregedoria da PM, ou para o Disque Denúncia 181, que é um serviço anônimo.”
O comandante, no entanto, faz questão de frisar que a atitude é de “alguns policiais”. De acordo com o coronel Rogério Andrade, um comunicado interno sobre essa situação circularia ainda nesta semana para alertar a tropa sobre esse tipo de atitude incorreta e também para que os policiais que cumprem seus deveres não deixem de frequentar os estabelecimentos. “Não aceitamos esse tipo de rótulo e temos direito de entrar em padarias, mercearias e restaurantes como qualquer outro cidadão”, afirma.