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Estado de Minas

Gasto com ações para obtenção de remédios é recorde em Minas

Depois de ver despesa com remédios obtidos na Justiça disparar 56.000% em 10 anos, Secretaria reserva para este ano maior valor de toda a história para a despesa


postado em 17/09/2012 06:49 / atualizado em 17/09/2012 08:30

A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES) acompanha há 10 anos a escalada das ações judiciais para obtenção de medicamentos não fornecidos pelo Sistema Único de Saúde em Minas. Somente no ano passado, o estado gastou R$ 93,8 milhões para isso, um salto de 56.000% em relação a 2002, quando foram destinados R$ 164,32 mil ao custeio de tratamentos e remédios via Justiça. Este ano, a SES prevê um gasto recorde de R$ 110 milhões para atender esses pacientes. De acordo com o médico e assessor técnico da pasta Leonardo Aquino, muitos estudos que comprovam a eficiência de determinado fármaco são patrocinados pelo laboratório interessado. “Quando se analisa a eficácia de alguns deles, percebe-se que são fracos. Por isso, a classe médica tem que tomar cuidado antes de prescrever”, alerta. Para ele, o estudo da UFMG indicando que o mesmo médico e escritório de advocacia de Belo Horizonte respondem pela maioria das ações para obtenção de medicamentos para reumatismo levanta dúvidas sobre as influências e interesses envolvidos. “Os medicamentos para artrite reumatoide são caros e têm efeitos colaterais importantes. Se não forem prescritos de forma adequada, o paciente pode ter mais danos do que benefícios”, alerta.

Em São Paulo, onde em 2011 foram gastos R$ 700 milhões com demandas judiciais no setor, o Ministério da Saúde já identificou que laboratórios contratavam pacientes cobaia para participar de pesquisas para determinados medicamentos, prometendo a eles a medicação até o fim dos testes. “Notamos que eram as mesmas pessoas que depois ingressavam na Justiça para conseguir esses remédios, como forma de forçar o ingresso dos medicamentos na lista do SUS, beneficiando determinado laboratório”, comenta o consultor jurídico do ministério Jean Keiji Uema.

Em 2003, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, com ajuda de um profissional da área de segurança pública e da Procuradoria-Geral do Estado, criou um núcleo de inteligência para investigar as ações judiciais em uma cidade do interior paulista. Em audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, relatório da Polícia Civil paulista, ao qual o Estado de Minas teve acesso, mostrou que depois de análise criteriosa foi descoberta a chamada “fidelização de advogados e medicamentos”: nas prescrições médicas, predominava o mesmo profissional, indicando a mesma droga, muitas vezes citando a marca do produto que deveria ser dispensado ao doente. “Identificamos características nos perfis deles, que chamamos de ‘advogados de marcas’ ou ‘advogados de um remédio só’”, diz o texto.

Na maioria das vezes, esses especialistas eram jovens, em início de carreira, assim como os médicos que prescreviam as substâncias. Todas as medicações eram de custo alto e prescritas como a última esperança para portadores de psoríase, uma doença autoimune inflamatória da pele. Ainda de acordo com o relatório, havia na história falsidade e outros delitos, bem como a existência de uma organização criminosa e articulada. Foi descoberta uma engrenagem que incluía uma ONG responsável por captar pacientes, médicos que prescreviam os medicamentos e advogados que entravam com as ações. O maior prejuízo, de acordo com a investigação, foi causado aos pacientes, pois muitos não eram portadores da doença. Os que tinham a patologia não apresentavam grau de gravidade que justificasse o uso do remédio, considerado de alto risco, por apresentar efeitos colaterais severos e que, inclusive, foi suspenso pela agência europeia de medicamentos.

“É uma relação promíscua e constante”, alerta o presidente da Comissão de Direito e Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil – seção Minas Gerais, Tadahirot Tsubouchi. Ele diz que há, sim, profissionais sendo induzidos por laboratórios, principalmente quando o caso envolve remédios caros e novos. “Há empresas que até chegam a fazer referência em sites para determinado advogado. É uma questão de ética. A OAB proíbe esse tipo de prática”, avisa.

Em nota, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou ser contra qualquer tipo de interação entre advogados, médicos e a indústria farmacêutica no sentido de orientar prescrições e tratamentos com o intuito de obter lucros. “De forma prática, o CFM e os conselhos regionais possuem um arcabouço ético e jurídico – que tem força legal – que estabelece os limites para a atuação do médico, inclusive vetando a interação entre o profissional e os representantes da indústria. O médico que for acusado de práticas irregulares pode ser denunciado junto às entidades, que procederão às medidas cabíveis para apuração, análise e julgamento dos suspeitos”, diz o texto. Se condenado, o profissional fica sujeito a penalidades que incluem advertência, censura pública, suspensão do exercício profissional por tempo determinado e cassação do registro.

Abuso tira verba de reais necessitados
Os pedidos de medicamentos que visam a favorecer laboratórios ou parcerias questionáveis entre médicos e advogados acabam roubando recursos de quem realmente precisa de produtos não oferecidos pelo SUS. Pacientes cujo organismo cria resistência aos remédios e que precisam de constante inovação das drogas sofrem com a morosidade da Justiça para garantir o que lhes salva a vida. É o caso de portadores da doença conhecida como mieloma múltiplo. Há sete anos, Angela Maria de Castro Azevedo, de 58, está em tratamento para a enfermidade e diz já ter usado todas as medicações existentes no país. “Quando um remédio não dá mais resultado, é necessária outra opção”, diz. Angela foi a primeira paciente em Minas a conseguir, gratuitamente, o medicamento Lenalidomida, que custa, em média, R$ 20 mil para um mês de tratamento. A medicação é aprovada em 80 países, mas ainda não tem a chancela da Anvisa. “É preciso importar, o que gera atraso. Todo mês tenho que comprovar a necessidade, com declaração médica. É uma luta cansativa. Ver que há abusos é ruim, porque acaba prejudicando quem realmente precisa.”

Um desses procedimentos abusivos, na avaliação da assessora chefe da Assessoria Técnica em Judicialização da Secretaria de Estado da Saúde, Vânia Rabelo, é o caso em que os advogados entraram com mandado de segurança pedindo uma dieta especial para uma criança com alergia a leite. “A lata de leite especial requisitada custava R$ 400, sendo que poderia ser substituída por uma de R$ 90. Mandamos o caso para o Ministério Público e o advogado confessou que trabalhava para a tal empresa fabricante”, revela. E há casos mais curiosos: “Por determinação da Justiça, há seis meses entregamos a uma paciente uma dieta de coxinhas e empadinhas especiais, por recomendação de uma nutricionista”. Segundo ela, há casos de pacientes para os quais as medicações custam R$ 1 milhão mensal, sem eficácia comprovada por estudos científicos.

Indústria defende parceria e vigilância

Para o presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Antônio Britto, não se pode colocar nos laboratórios a culpa de possíveis irregularidades. “Temos no Brasil 340 mil médicos, 25 mil medicamentos e 195 milhões de pacientes. Se existem 200 mil processos na Justiça, dizer que o fenômeno ocorre por causa de deslizes é não querer encarar a realidade”, diz. Ele afirma que, a partir do momento em que a Constituição diz que a saúde é gratuita e o governo não oferece medicamentos mais complexos, as famílias vão em busca de seus direitos.

“Nenhum medicamento pode ser vendido sem que tenha o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). É claro que a indústria quer os medicamentos na lista do SUS, mas isso é um direito do cidadão”, defende, dizendo desconhecer qualquer influência de má-fé dos laboratórios no fenômeno da judicialização. “Temos uma parceria com o Conselho Federal de Medicina e qualquer denúncia que vá contra o código de ética médica é averiguada.”

“Seríamos levianos se disséssemos que, por trás da grande demanda judicial, há, fundamentalmente, posturas inadequadas. Mas de fato, em alguns casos, há sim uma concentração de advogados e médicos no mesmo processo”, afirma o consultor jurídico do Ministério da Saúde Jean Keiji Uema. “Nossa intenção é trabalhar a conscientização do Judiciário. O SUS dispõe de políticas e procedimentos estabelecidos, que não estão sendo observados nas ações”, acusa, referindo-se a liminares para produtos não aprovados pela Anvisa.

O fato é que, diante de possíveis esquemas irregulares, órgãos públicos tentam deixar mais transparente o processo. A estratégia vai desde municiar o Judiciário com conhecimento técnico até uma exigência mais detalhada dos pedidos de medicamentos. Assim, pacientes que necessitam com urgência das medicações de alto custo têm a burocracia como novo adversário.

Presidente da ONG SOS Vida, o advogado Antônio Carlos Teodoro, chama atenção para os entraves enfrentados pelos pacientes . “O poder Judiciário tem que estar mais preparado. Em Belo Horizonte, criaram uma central que analisa se o medicamento solicitado pode ser substituído por outro existente no SUS. Isso não pode ocorrer. Se o paciente tem a recomendação médica, ela é soberana. Se o médico receitou, é porque conhece do assunto. O cidadão está sendo prejudicado. Se há indícios de irregularidade, é preciso que haja uma investigação séria”, pontua.

Saiba mais
GARANTIA NA LEI

A Constituição Federal, nos artigos 6º e 196º, prevê o acesso universal às ações e serviços de saúde, como direito social e dever do Estado. A Lei 8.080/90, que instituiu o SUS, estabelece, em seu artigo 6º, que “é atribuição do Sistema Único de Saúde a execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”. Assim, se o poder público não fornece o medicamento de que os pacientes precisam, mas pelo qual não podem pagar, recorrer à Justiça é o caminho natural e legítimo. Foi o que fizeram, primeiramente, grupos de portadores de HIV/Aids, seguidos por outras associações de usuários de remédios de custo elevado. Para atender à procura por esses produtos sem a necessidade de o paciente recorrer à Justiça foi criado em 1993 o Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, que ganhou impulso em 1998, com a Política Nacional de Medicamentos. Ela incluiu a garantia de acesso da população aos produtos de alto custo para doenças de caráter individual.

 


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