Diamantina – Páginas escritas em grego, latim, francês, alemão e bom português saem da escuridão do abandono e ganham a luz da conservação. E, aos poucos, transformam a terra de Juscelino Kubitschek e Chica da Silva num gigantesco “livro aberto” para o conhecimento, pesquisa e preservação da memória. Na cidade do Vale do Jequitinhonha, a 292 quilômetros de Belo Horizonte, um projeto desenvolvido no Seminário Episcopal do Sagrado Coração de Jesus, fundado em 1867 e vinculado à Mitra Arquidiocesana de Diamantina, começa a recuperar cerca de 50 mil volumes, muitos deles raros, da biblioteca da instituição, os quais ficaram confinados, sem cuidado e atenção, durante 12 anos. Na primeira fase, prevista para terminar em 30 de novembro, o trabalho contempla 10 mil obras, com desinfestação de insetos xilófagos (cupins e traças) e higienização. “Este é um universo que está sendo desbravado e será de grande utilidade para os estudiosos”, diz, com entusiasmo, o diretor de estudos do seminário, padre Júlio César Morais.
Na realidade, três mundos literários se sucedem no subsolo do prédio pintado de amarelo-claro onde estudou, quando adolescente, o ex-presidente JK (1902-1976). No primeiro, na sala da antiga biblioteca, estão 40 mil volumes – hoje enfileirados nas estantes, de forma organizada – à espera de recuperação. No segundo, no ateliê montado desde julho para essa tarefa, especialistas e sua equipe verificam a situação dos livros, separando-os em bons (50%), regulares (30%) e ruins (20%), e fazem a conservação. E finalmente, no terceiro, estão os já higienizados e prontos para consulta. Os ambientes são próximos, mas o caminho para salvá-los é longo e cheio de surpresas.
O acervo ficou longe dos olhos, de 2000 até o ano passado, quando a direção do seminário detectou o estado de degradação, chamou profissionais da área de conservação e buscou recursos. “Monsenhor Celso de Carvalho, falecido há 12 anos, tinha esse acervo para uso pessoal. Com ele, morreu o domínio da biblioteca”, conta padre Júlio César. Até agora, o livro mais antigo encontrado data de 1615, embora o diretor de estudos tenha localizado, no meio das pilhas, uma lista constando um de meados do século 16. “Ainda o estamos procurando”, afirma com determinação.
Com capa de pergaminho (pele de animal) e escrito em latim, o Prontuário moral sobre o evangelho dominical, de 1615, se encontra na condição de regular e recebe olhares de admiração da equipe envolvida na tarefa de recontar a história do seminário por meio de um dos seus maiores tesouros: os livros. “Esta biblioteca é irmã da existente no Santuário do Caraça, em Catas Altas. Começou em 1886, com o segundo reitor, padre Miguel Maria Sípolis, vindo da França junto com os sacerdotes lazaristas”, diz o diretor de estudos, que não para de fazer descobertas. A mais recente, registrada com caneta-tinteiro, é um caderno com a cronologia do seminário.
Na hora de escolher os primeiros livros para conservação, prevaleceu o critério de data e relevância da obra, explica a historiadora e arquivista da Mitra Arquidiocesana, Verônica de Mendonça Motta: “O acervo foi se formando desde os primeiros tempos da instituição. Desta forma, temos volumes do século 18 ao 21, pois os padres que vinham para cá traziam as suas coleções em várias línguas. Temos assuntos variados, com enfoque maior na teologia, a exemplo de missais, bíblias, vida de santos e direito canônico, bem como humanidades e história. Mas temos também obras de autoria de Marcel Proust, Dostoievsky e outros. “No século 19 e primeira metade do 20, a biblioteca recebia um exemplar de muitas obras sobre religião e cultura geral publicadas na França”, diz Verônica. Os recursos para a primeira etapa (R$ 100 mil) da empreitada são do Fundo Estadual de Cultura (FEC), da Secretaria de Estado da Cultura, com a contrapartida da Mitra Arquidiocesana de Diamantina, estando os serviços a cargo do Grupo Oficina de Restauro (desinfestação), Pedra Menina Arte, Cultura e Restauro (higienização) e Marca D’Água, que vai restaurar os livros mais debilitados. O primeiro da leva, Letras symbolicas e sibyllinas, de 1747, que mais parece uma “renda de guipir”, todo furadinho pelos insetos, já está, em Belo Horizonte, nas mãos da restauradora Blanche Thais Porto de Matos.
No ateliê, o restaurador Adriano Ramos mostra o estado de degradação de alguns volumes. “Além dos danos causados por insetos e fungos, encontramos manchas decorrentes de flores, fita adesiva, riscos de caneta, marcas de santinhos, recortes de jornais velhos e outros fatores de alto risco. “A situação era de abandono, mas os mineiros vão ter de volta uma das bibliotecas mais importantes do estado”, revela Adriano. Quando terminar a primeira etapa do projeto, elaborado por ele, a intenção é partir para busca de mais recursos.
Nas mãos da estudante de história da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Iara Nunes Ferreira, de 24, há outro livro, desta vez de 1702, com encadernação em couro e de autoria de Augustini Barbosae. “A gente tem que se segurar para não ler todos esses livros”, brinca Iara, que, a exemplo dos demais integrantes da equipe, usa jaleco branco, máscara e luvas cirúrgicas. Depois de trabalhar como estagiária voluntária na Biblioteca Antônio Torres, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no Centro Histórico de Diamantina, a estudante se sente bem no novo espaço. “São livros diferentes, muitos religiosos, mas sempre interessantes para se lidar”, explica. Ao lado, Maximiliano dos Santos Barroso, de 18, atuando como auxiliar, está gostando da experiência nesse universo formado por letras, palavras, ideias e pensamentos. Tem toda a razão de gostar. Impossível, para qualquer um, ao ver textos impressos há tanto tempo, não tentar um mergulho profundo nessas páginas guiado apenas pela vontade de conhecer outras épocas e costumes.
Saiba mais
Tecnologia de ponta
A técnica em higienização Fernanda Alves Guerra lembra que os maiores inimigos dos livros são a poeira, a umidade e o armazenamento em local inadequado, além, claro, dos agentes biológicos. “A prevenção é essencial para garantir a sobrevida das obras e a oxigenação das páginas (aeração).” Numa sala próxima ao ateliê, fica o terror dos insetos, algo comparável a uma bolha assassina. É o processo de anóxia ou atmosfera modificada: os livros são colocados em bolsas plásticas impermeáveis, hermeticamente fechadas, havendo a substituição do oxigênio, no interior, por um gás inerte – no caso, o nitrogênio, responsável pela redução do nível de oxigênio contido em cada bolsa para menos de 0,2%. O período de permanência do material dentro da bolsa pode ser de 30 a 60 dias.
Memória
Legado cultural
O fundador da biblioteca do seminário de Diamantina, padre Miguel Maria Sípolis, trabalhou também em Portugal. No Brasil, antes de seguir para Diamantina, aonde chegou em 1886 sucedendo o seu irmão, padre Bartolomeu Sípolis, que fora transferido para a corte do Rio de Janeiro como provincial, ele atuou como missionário, professor e reitor do Santuário do Caraça. Com o tempo, foram incluídas no acervo as bibliotecas pessoais dos bispos dom João Antônio dos Santos (1863-1905), dom Joaquim Silvério de Souza (1905-1933), dom Serafim Gomes Jardim (1934-1953) e dom Geraldo de Proença Sigaud (1960-1980) e de vários sacerdotes lazaristas e seculares, como a do monsenhor Celso de Carvalho (1913-2000), que era filósofo e trovador.