Um artista, um legado monumental e uma história ainda envolta em mistérios. Na semana em que Minas reverencia a memória de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), com o início das homenagens pelo bicentenário de sua morte – programação que vai até 18 de novembro de 2014 –, há muito ainda para ser conhecido e descoberto sobre o arquiteto, escultor e entalhador que deslumbra o mundo com os profetas de Congonhas e deixou marcas também em Ouro Preto, Mariana, Barão de Cocais, Catas Altas, São João del-Rei, Tiradentes, Sabará, Caeté e outras cidades mineiras.
Especialistas esperam que, com o foco sobre o mestre do barroco, novas pesquisas sejam desenvolvidas para jogar mais luz sobre a obra do mineiro de Ouro Preto e tirar das sombras algumas facetas da vida e do trabalho do gênio. A doença que o acometeu e causou deformidade é um dos pontos em questão, mas o médico dermatologista Geraldo Barroso de Carvalho não tem dúvidas: “Aleijadinho tinha lepra”.
Mas foi exatamente na fase em que foi acometido pela deformidade que o gênio se tornou mais produtivo, diz a professora Myriam Andrade Ribeiro Oliveira, mestre e doutora em arqueologia e história da arte pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, e pós-doutora pela Universidade de Londres. Para ela, Aleijadinho é “o artista de maior importância do período colonial brasileiro e também o de maior qualidade”. Na avaliação da especialista, faltam estudos mais abrangentes sobre as obras do escultor na decoração das igrejas e em pedra-sabão. Para quem acha impossível que um homem pudesse trabalhar tanto, a professora explica que, como era comum naqueles tempos, o mestre tinha uma oficina em Ouro Preto onde trabalhavam cerca de 20 pessoas.
“Aleijadinho trabalhou em fases distintas – na juventude, na maturidade, quando esculpiu a peça que acho mais bonita, a Santana, do Museu do Ouro, de Sabará, e na terceira, depois que ficou doente”, afirma Myriam, autora da obra O Aleijadinho e sua oficina – Catálogo das esculturas devocionais, editado em 2002 e escrito em parceria com os especialistas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antônio Fernando Batista dos Santos. O livro lista 128 esculturas devocionais em madeira, com obras esculpidas inteiramente por Aleijadinho, outras que ele fez com seus subordinados e também aquelas de oficiais a seu serviço.
RETRATO
Qual seria a imagem desse gênio do barroco? O Museu Mineiro, na Avenida João Pinheiro, em Belo Horizonte, tem exposto o Retrato Oficial de Aleijadinho – óleo sobre pergaminho feito no século 19 por Euclásio Penna Ventura. O quadro, na verdade um ex-voto, medindo 20cm por 30cm, pertenceu à Casa dos Milagres de Congonhas. Mostra um mulato bem vestido e foi vendido em 1916 a um comerciante identificado como senhor Baerlein, proprietário da Relojoaria da Bolsa do Rio de Janeiro. A alegação de que se tratava do rosto do mestre do barroco se baseou na imagem representada ao fundo da pintura, em segundo plano, que parecia idêntica a uma obra de autoria do artista.
A trajetória da pintura até o museu foi longa. A historiadora Vânia Leite Rocha, da Secretaria de Estado da Cultura, explica: “O senhor Baerlein, não se sabe quando, vendeu o quadro ao senhor Bastos Dias, também do Rio de Janeiro. Este, por sua vez, o transferiu para o Antiquário Esslinger, da mesma cidade, onde foi comprado pelo colecionador carioca Guilherme Guinle. Na época, a pintura já estava acrescida de nova informação, dada pelo antiquário: seria provavelmente de autoria do mestre Manuel da Costa Ataíde. Por intermédio do mineiro Nelson Libânio, Guinle o doou, em 1941, como Retrato de Aleijadinho, ao Arquivo Público Mineiro, instituição estadual na época responsável pela guarda do patrimônio histórico, artístico e cultural de Minas, até a instalação do Museu Mineiro.
O mal que mutilou e batizou o mestre
O Museu Mineiro, na Avenida João Pinheiro, em Belo Horizonte, abriga aquele que é conhecido como o retrato de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mas a imagem deixa no ar algumas indagações, segundo os especialistas. O óleo sobre pergaminho, feito no século 19 por Euclásio Penna Ventura, foi pintado quando o artista estava vivo ou depois de sua morte? Olhando-se cada detalhe da obra, nota-se que Aleijadinho está com as mãos escondidas sob o casaco e traz um caderno de anotações vermelho no bolso. O fato de o artista não mostrar as mãos tem um significado: “Aleijadinho tinha lepra”, afirma o médico dermatologista Geraldo Barroso de Carvalho, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Autor de Doenças e mistérios do Aleijadinho, na terceira edição, Geraldo está escrevendo outro livro sobre o assunto, mas faz segredo sobre o título, antecipando apenas que o lançamento da obra será no ano que vem.
“Não tenho dúvida de que Aleijadinho tinha hanseníase, que lhe atacou a face, mãos e pés. Ele perdeu alguns dedos das mãos, como os indicadores e polegares. O trabalho com a pedra-sabão pode ter machucado muito a pele, mas não teria causado doenças”, afirma o dermatologista, que vive em Barbacena, na Região Central, e pesquisa o assunto há mais de 40 anos. A forma da doença no escultor, entalhador e arquiteto mineiro era “com predominância de lesões dos nervos, o que, na época dele, não era reconhecido como lepra”. “Ele tinha mãos e pés mutilados e paralisia na face”, explica o médico.
O especialista de 78 anos explica que a exumação do corpo do artista, em 1998, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Ouro Preto, mostrou que os ossos estavam bem avermelhados. “É possível que ele fosse portador de porfiria, doença causada por um distúrbio no metabolismo de hemoglobina, a qual leva ferro para o sangue. Com isso, há excesso de ferro – o óxido de ferro é vermelho – em todos os órgãos, inclusive nos ossos.”
Na primeira exumação feita em 1930, o então zelador das igrejas de São Francisco e Mercês da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Manuel de Paiva Filho, declarou a um jornal carioca que os ossos de Aleijadinho eram avermelhados. Diante disso, o professor Paulo da Silva Lacaz, do Rio de Janeiro, proferiu, em 1967, uma palestra em Juiz de Fora, na Zona da Mata, abordando o tema. “Entrevistei o Manuel de Paiva Filho, naquele mesmo ano, quando já estudava o caso”, recorda-se o médico Geraldo Barroso de Carvalho, destacando que a porfiria provoca muita sensibilidade à luz. Essa característica pode ajudar a explicar por que Aleijadinho se mantinha sempre coberto e circulava mais à noite.
Recentemente, Geraldo Barroso fez uma pesquisa ouvindo dezenas de dermatologistas e lhes apresentou o capítulo que fala da doença do artista contido no livro, de 1858, Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho, de autoria de Rodrigo José Ferreira Bretas. Conforme a descrição, os médicos foram unânimes em dizer que a moléstia que o acometeu era a lepra.
O ARTISTA E SEU TEMPO
1730/38 - Antonio Francisco Lisboa nasce em 29 de agosto, em Ouro Preto. Filho do português Manuel Francisco Lisboa e da escrava Isabel. Estudiosos divergem entre 1730 e 1738 como o ano do nascimento
1763 - Faz sua primeira intervenção com características arquitetônicas: frontispício e torres sineiras da Matriz de São João Batista, em Barão de Cocais, e ainda a imagem São João Batista
1766 - Em Ouro Preto, o artista executa o projeto da Igreja de São Francisco de Assis, as imagens do frontispício e a fonte-lavabo da sacristia
1768 - Antonio se alista no Regimento da Infantaria dos Homens Pardos de Ouro Preto e, durante três anos, presta serviço militar, o qual conjuga com atividade artística intensa
1774 - Recebe a encomenda do projeto da Igreja de São Francisco de Assis, de São João del- Rei e executa o projeto da Igreja de São José, de Ouro Preto. Em Sabará, faz trabalhos para a Igreja do Carmo
1777 - No Rio de Janeiro, Antonio reconhece, na Justiça, a paternidade do filho, chamado, como o avô, Manuel Francisco Lisboa. É detectada uma grave doença degenerativa que lhe deforma corpo e membros
1780 - Conclui o conjunto de talha, retábulos, púlpitos e coro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Jaguara, encomendada pela Irmandade da Ordem Terceira do Carmo de Sabará
De 1784 a 1786 - Aleijadinho esculpe o conjunto em madeira da Fazenda da Jaguara, em Matozinhos. No início do século 20, o acervo é transferido para a Matriz do Pilar, em Nova Lima, na Grande BH
1790 - Recebe o apelido de Aleijadinho. Tem obra elogiada no levantamento de fatos notáveis, ordenado pela Coroa em 1782 e feito pelo vereador da Câmara de Mariana capitão Joaquim José da Silva
1790-1794 – Aleijadinho se ocupa do retábulo do altar-mor da Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, com grande equipe de oficiais de talha. A obra é o coroamento da atividade de escultor e entalhador
De 1796 a 1799 – Nas capelas que recriam a via-crúcis, em Congonhas, Aleijadinho esculpe o conjunto de 64 figuras em madeira. Nas paredes, há as pinturas bíblicas de Manoel da Costa Ataíde (1762-1830)
De 1800 a 1805 – No Santuário Basílica do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, em Congonhas, Aleijadinho esculpe os 12 profetas que receberam reconhecimento da Unesco como patrimônio mundial
1812-1813 – O estado de saúde de Aleijadinho se agrava. Passa a viver em uma casa perto da Igreja do Carmo, em Ouro Preto, para supervisionar as obras que estavam ali em andamento
1814 - Aleijadinho morre em 18 de novembro, com 76 anos, segundo certidão de óbito arquivada na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Está sepultado sob o altar de Nossa Senhora da Boa Morte
Fonte: Museu Aleijadinho/Paróquia Nossa Senhora da Conceição, de Ouro Preto