Otacílio Lage
Por “questões de segurança”, Marcelo foi morar debaixo de um dos viadutos que cruzam a Avenida Cristiano Machado – batizado Oswaldo França Júnior, escritor mineiro –, do lado do Bairro Silveira, Região Nordeste da capital. Durante o dia (menos aos domingos), das 9h às 15h, ele faz ponto do outro lado do corredor de transporte, na confluência com a Avenida José Cândido da Silveira, no Bairro Cidade Nova, na mesma região. Ao longo do “expediente”, Marcelo fatura os trocados que lhe valem a sobrevivência desprovida de quase tudo, menos do gosto inabalável pela leitura.
Mesmo enfrentando o preconceito de ser morador de rua e de expor os livros sobre um pedaço de pano protegido por plástico, Marcelo não desanima. Há dias em que fatura R$ 10/R$ 20, mas em outros passa em branco, “mas dá para ir levando”. Ele precisa de uma segunda via da certidão de nascimento para tirar novos documentos, o que lhe permitirá requerer ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) aposentadoria por invalidez. Como não tem mais parentes vivos na Bahia, ele está tentando um contato com o viúvo da última tia que tinha, em Salvador, para que ele providencie seu novo registro civil.
Marcelo, que completa 43 anos em 9 de abril, ganha livros de e para todos os gostos. Seu gênero predileto é romance, mas lê outros “para passar o tempo”. Seus fregueses são de todas as classes e de todos os credos. Ele vende tanto livros de autoajuda e de poesia quanto de economia, história ou de ficção. “Não tenho como escolher os livros que ga- nho nem os que coloco à venda. Eu os ponho no chão e conto com a boa vontade de quem passa por aqui. Quem sabe amanhã vou poder ter uma moradia e vender esses livros de um modo mais fácil?”, diz o baiano, que tem também o conterrâneo Jorge Amado (Tenda dos milagres e Tieta do agreste) entre as obras expostas, sem falar em Ernest Hemingway (The sun also rises), Manuel Scorza (Garabombo, o invisível) e muitos outros renomados autores.
Antes de pegar a mochila carregada de livros e ir para o outro lado da Avenida Cristiano Machado, por meio de uma extensa passarela, para “ganhar o dia”, Marcelo testa a muleta e solta um de seus pensamentos rascunhados num caderno roto: “Seria tão bom se todos os sonhos bons se tornassem realidade e as tristes realidades não passassem apenas de sonhos”. Ele está confiante que vai sair das ruas tão logo volte a ter uma identidade. Por enquanto – reconhece – ele é apenas um rosto às margens de uma calçada, uma pessoa que não tem como provar que existe. Contudo, nos livros, ele tira forças para acreditar que, dia deste, ele vai voltar a ser um cidadão brasileiro.