Luiz Ribeiro
Enviado especial
Pedras de Maria da Cruz e Manga – Separados do mundo há cerca de cinco décadas, desde seus ancestrais que foram expulsos das margens do Rio São Francisco por fazendeiros, privados de energia elétrica e desconhecendo TV ou internet, os moradores das ilhas do Velho Chico podem ter na educação a ponte para romper o isolamento que se eterniza por gerações. Nessas comunidades, o analfabetismo é fato comum entre os adultos, privados do estudo pela distância da escola. Hoje, os filhos dos ilhéus já enxergam uma oportunidade para mudar a realidade. Porém, a tarefa está longe de ser fácil. Para chegar à sala de aula os alunos enfrentam uma vida de sacrifício, iniciada na caminhada até a lancha que faz as vezes de escolar. Depois é preciso gastar boa parte do tempo navegando, antes de caminhar novamente até a escola.
O transporte fluvial, iniciado há quatro anos, é feito em lanchas fornecidas aos municípios ribeirinhos pelo governo federal, por intermédio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A reportagem do Estado de Minas acompanhou a rotina de crianças das ilhas na jornada até a escola. A labuta é encarada por estudantes como Vanaick Ferreira Silva, de 13 anos, do sétimo ano do ensino fundamental, da Ilha da Capivara, em Pedras de Maria da Cruz. Ele acorda cedo, toma banho no rio e, por volta das 11h, logo após o almoço, caminha cerca de 400 metros para esperar a lancha escolarque o levará até uma escola pública da cidade.
A embarcação, que tem capacidade para 19 alunos, parte por volta do meio-dia e leva aproximadamente 40 minutos para percorrer os cerca de 10 quilômetros até o desembarque em Pedras de Maria da Cruz. Lá, os alunos tem de caminhar mais até a escola, onde costumam chegar atrasados para as aulas, que começam às 13h. Retornam depois das 17h. “Tem dia que eles atrasam e já chegam aqui à noite, no escuro”, reclama uma das mães.
O sacrifício, no entanto, não desestimula Claudinéia Pereira Lima, de 12, que está no sexto ano. “Quero ser médica para cuidar das pessoas”, diz ela, integrante de uma família de seis irmãos, filhos de Neide Pereira Lima, que vive em extrema pobreza, em uma casa de pau a pique. Claudinéia se refere a algo que é pouco conhecido por seus vizinhos. Não é fácil conseguir atendimento médico na ilha.
Não é sempre que os filhos dos moradores das ilhas podem recorrer ao transporte fluvial. Nos dois primeiros meses do ano letivo deste ano, os alunos das ilhas em Pedras de Maria da Cruz ficaram impedidos de ir à escola, pois uma peça da lancha escolar do município quebrou e a prefeitura não conseguiu consertá-la a tempo.
“O problema é que precisávamos comprar uma peça para a lancha e não tinha fornecedor qualificado na região. Além disso, para adquirir qualquer coisa é preciso licitação”, alega o prefeito da cidade, Sebastião Chaves de Medeiros (PTB). “Estamos tentando, junto ao Ministério da Educação, a liberação de recursos para comprar um lancha reserva”, acrescentou.
A rotina do escolar fluvial é comum nas comum para as crianças que vivem no meio da correnteza do Velho Chico. Por volta das 11h, na Ilha de Pau Preto, município de Manga, alunos formam fila para entrar na lancha. Navegam por oito quilômetros. O embarque é rápido. Os estudantes pulam com destreza no transporte, colocam coletes e se acomodam. Mas a agilidade não é sinônimo de facilidade. Domingos Pereira dos Anjos, de 12, que está no sétimo ano do ensino fundamental, reclama da dificuldade para chegar à escola. “A gente tem que esperar a lancha debaixo do sol quente. Muitas vezes tenho que sair de casa sem almoçar”, disse o garoto, que sonha em ser policial militar.
Também em Manga, a Ilha da Ingazeira conta com uma pequena escola, da rede municipal, mas ela oferece ensino somente até o quinto ano do ensino fundamental. São 11 alunos. A instituição funcionava em um antigo prédio construído perto do barranco do rio e que foi destruído por uma enchente em 2010. As aulas, ministradas por uma moradora da ilha, foram transferidas para uma pequena casa, alugada pela prefeitura, em local mais seguro. Mas, como todas as casas dos demais moradores, não dispõe sequer de estrutura de saneamento básico, como banheiro.
As crianças e adolescentes que passaram do quinto ano são transportados em lancha por nove quilômetros pelo Rio São Francisco até o distrito de Porto Agrário, que pertence a Juvenília. “Os alunos viajam sozinhos com o condutor, sem ninguém responsável pela segurança deles”, reclama o lavrador José Carlos Nunes, que mora na ilha.
A secretária de Educação de Manga, Eneida Mendes, foi procurada, mas, informada sobre a reclamação dos moradores da Ilha da Ingazeira, disse que iria apurar a situação. Segundo o Ministério da Educação, 10 municípios ribeirinhos de Minas receberam 14 lanchas usadas no transporte. O MEC informou que repassa recursos específicos para custear esse tipo de transporte, por intermédio do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar, mas não revelou o montante dos recursos.
Brincadeira de antigamente
O francês Jean Jaques Rosseau, na teoria do “bom selvagem”, que surgiu no século 18, diz que “o homem por natureza é bom” – ou seja, nasce puro e a maldade vem da sociedade. Essa “pureza” citada pelo pensador francês pode ser verificada nas crianças das ilhas do São Francisco, com quase nenhum contato com o “mundo da terra firme”.
Elas carregam um primitivismo pueril, não conhecem brinquedos modernos, como jogos eletrônicos ou telefone celular, mas são felizes com as brincadeiras que inventam e não se importam com os riscos aos quais estão expostas, como cobras venenosas. As serpentes são comuns nas ilhas, principalmente por causa de seus hábitos alimentares. No local há muitos caçotes, como é chamada uma espécie de sapo comum em áreas alagadas da região, alimento para as cobras.
“De vez em quando, a gente tá dormindo à noite e aparece cobra debaixo da cama”, diz Claudinéia, de 12 anos, sem demonstrar medo. Na mesma ilha estão os irmãos Wátila, de 6 anos, e Clayton, de 5, sempre com um sorriso no rosto. O motivo da alegria é o cavalo de pau, brincadeira infantil que vem de épocas passadas. Wátila estava montada em Pica-pau, enquanto o irmão se divertia no brinquedo que chama de Pastorinho. As crianças da ilha também se divertem com outras brincadeiras, como esconde-esconde, bater lata e gostam de simular que estão dirigindo um barquinho a motor.
A Bahia é logo ali
A Ilha da Ingazeira, em Manga, é a ilha do São Francisco mais habitada, com 32 famílias, todas remanescentes de quilombos. Os moradores estão em Minas, mas fazem compras, recebem pagamentos de aposentadorias e procuram atendimento médico no estado vizinho, na Bahia.
De Manga até a ilha é preciso navegar 45 quilômetros pelo rio em um barco movido por um pequeno motor (rabeta), com velocidade média de 8 km/h. É um caminho lento. Por terra, são 70 quilômetros entre a sede do município e o lugar em terra firme onde pode ser feita a travessia de um braço do rio para chegar até a ilha. Para chegar ao local por terra é preciso encarar atalhos em trechos vicinais malconservados, que ficam intransitáveis durante o período chuvoso.
A ilha fica na divisa de Minas com a Bahia. Por isso, os moradores preferem fazem compras nos municípios baianos de Malhada (17,4 mil habitantes) e Carinhanha (28,7 mil habitantes), que ficam mais perto do que Manga: a primeira a 10 quilômetros e a segunda a 15 quilômetros de distância. O presidente da Associação dos Remanescentes Quilombolas da Ilha da Ingazeira, Celino Leris de Oliveira, diz que, quando precisam comprar algum mantimento, os moradores vão até Malhada, deslocando-se de rabeta. A maior dificuldade é conseguir atendimento médico. “A gente tem que viajar até Carinhanha, que é um lugar mais desenvolvido. Mas é muito demorado”, diz. Os habitantes também usam sinal de telefonia celular da Bahia. “É o único jeito de a gente se comunicar e buscar algum recurso”, diz João Batista Pereira, de 60.
Celino lamenta a má qualidade das moradias, com paredes de pau a pique, cujas frestas servem de esconderijos para o barbeiro transmissor da doença de Chagas. “O pior é que a Sucam nem vem mais aqui”, critica o ilhéu, fazendo referência à atual Fundação Nacional de Saúde (FNS), substituta do órgão que combatia os vetores de doenças e endemias na zona rural. Celino reclama também da falta de saneamento básico. “A gente é obrigado a beber a água do Rio São Francisco, sem nenhum tratamento. E o rio recebe esgoto e lixo”, descreve.
Os moradores da Ingazeira retiram o sustento do cultivo de pequenas lavouras de milho e feijão. “Mas, com a seca deste ano não colhemos nada”, conta Amauri Nunes da Conceição, de 27, que vive numa moradia simples de três cômodos, de parede de enchimento e de chão batido.