Conciliar mobilidade urbana e estrutura viária do século18 é um desafio histórico para cidades mineiras surgidas nos tempos coloniais: o trânsito dá nó por entre as ruas estreitas, enquanto casarões trincam, o pavimento afunda e telhados despencam. Diante da desordem nas vias públicas, principalmente com a circulação de caminhões e ônibus, da falta de fiscalização e dos danos causados ao patrimônio arquitetônico, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) entrou no circuito e já abriu inquéritos para investigação e ações na Justiça em 12 municípios: Caeté, Sabará e Santa Luzia, na Grande BH; Diamantina, Serro e Minas Novas, no Vale do Jequitinhonha; São João del-Rei e Prados, no Campo das Vertentes; São Tomé das Letras, no Sul; Pitangui, no Centro-Oeste; e Moeda e Conselheiro Lafaiete, na Região Central. O bom exemplo é dado por Tiradentes, no Campo das Vertentes, que fechou o trânsito, de sexta-feira a domingo e nos feriados, para carros e motos, abrindo espaço aos pedestres.
“Falta planejamento e fiscalização eficaz. Há uma desproporção nas cidades, pois nessas ruas passavam carroças e cavalos e hoje há muito trânsito”, afirma o coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC), Marcos Paulo de Souza Miranda. Ele ressalta que o casario antigo e igrejas barrocas sofrem abalos, a rede de água muitas vezes não suporta o peso dos veículos e arrebenta e há comprometimento completo dos núcleos históricos. Marcos Paulo acrescenta que há muitas normas, embora o grande entrave seja mesmo a falta de fiscalização. Ele cita Ouro Preto, na Região Central, como cidade que já melhorou muito, especialmente no caso da Praça Tiradentes, embora tenha sido alvo de ação na Justiça. “Algumas cidades cumpriram em parte as recomendações do Ministério Público, mas outras não, como São João del-Rei”, diz o promotor.
Para desatar o nó cego do trânsito, Tiradentes saiu na frente e se tornou a primeira cidade no estado e segunda no país – a pioneira é Paraty (RJ) – a restrigir drasticamente a circulação de automóveis e motos no Centro Histórico, liberando a área para moradores e turistas. A iniciativa deu certo, segundo as autoridades municipais, mas ainda há visitantes que desrespeitam a lei, estacionando em locais proibidos. Por isso, desde ontem há correntes interditando vias de acesso e dois suportes laterais, de concreto, os chamados “fradinhos”, informa o prefeito Ralph Justino.
Nenhum infrator foi multado no feriadão de 21 de Abril, quando o novo sistema estreou em Tiradentes, mas os fiscais afixaram adesivos de advertência nos parabrisas de alguns carros. “Se persistirem as irregularidades, vamos multar. Muita gente passou ao lado das placas de sinalização e não seguiu as orientações”, diz o prefeito, certo de que deixar o núcleo histórico livre apenas para pedestres foi “uma experiência maravilhosa”. A proposta de fechar a área das 8h de sexta-feira à meia-noite de domingo, nos feriados e recessos surgiu há mais de cino anos, quando também começaram os debates com a comunidade com o objetivo de proteger igrejas, museus e o casario de mais de 200 anos.
Barroco e tráfego em rota de colisão
Ouro Preto, com 70 mil habitantes, celebra 35 anos como patrimônio cultural da humanidade, título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), mas convive não é de hoje com gargalos no trânsito. “A cidade é viva, não apenas um cenário. Nosso espaço físico tem estrutura urbana do século 18, com funcionamento do século 21. De 2006 a 2013, a população cresceu 5%, enquanto o número de veículos aumentou 56%”, diz o secretário municipal de Governo, Flávio Andrade.
Embora não concorde com a iniciativa de Tiradentes e de Paraty, que não considera oportuna, por dificultar o acesso da população ao comércio, Andrade reconhece a necessidade de harmonizar a preservação do patrimônio e a dinâmica cotidiana de Ouro Preto. Um dos pontos críticos está na Praça Tiradentes, por onde passam diariamente mais de 5 mil veículos e que, no ano passado, foi alvo de polêmica. O secretário informa que está em andamento o Plano de Mobilidade Urbana, conforme determina lei federal para municípios com mais de 20 mil habitantes. E diz que o trabalho, que prefere chamar de “plano de mobilidade humana”, está em fase de diagnóstico e consulta à comunidade.
Em Sabará, há restrições ao trânsito pesado, mas os problemas não são poucos, em especial na Rua Dom Pedro II, via tombada desde 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Morador da rua, o historiador José Bouzas diz que a fiscalização é um dos pontos fracos também em Sabará. “Há alguns anos, puseram dois vasos, com palmeiras, para impedir a circulação de caminhões na área, mas tempos depois ele foram encostados na calçada. Com o sistema rotativo, houve melhoras, mas há muito desrespeito”, afirma. As construções antigas sofrem com o viavém de veículos, tanto que uma casa da Pedro II teve o telhado da entrada destruído devido à colisão de um caminhão.
De acordo com a Gerência de Transporte de Sabará, só é permitido no Centro Histórico o trânsito de veículos abaixo de 4,5 toneladas. Ônibus que circulam na área são apenas os de pequeno porte – o termo de ajuste de conduta (TAC) nesse sentido foi assinado em gestões anteriores. Já a Prefeitura de São João del-Rei informa que contratou uma empresa para fazer o diagnóstico na área central. Outros municípios também avançam, como Diamantina, que contratou uma empresa de consultoria para fazer o diagnóstico e propor um projeto viário, além do Serro e de Santa Luzia, que já impuseram restrições à tonelagem dos caminhões e às dimensões de ônibus.
Quando a política
atropela a memória
Leis existem, a comunidade colabora, mas, muitas vezes, mudanças no governo é que atropelam o bom funciomento do trânsito. Em novembro de 2014, ao assumir a Prefeitura de Ouro Preto, diante do afastamento, por 48 horas, do chefe do Executivo José Leandro Filho, o então presidente da Câmara Municipal, Leonardo Edson Barbosa, determinou a reabertura do estacionamento para veículos na Praça Tiradentes, o que estava proibido. Quando Leandro reassumiu, as restrições foram retomadas – hoje, há poucas vagas para veículos oficias em frente à Câmara. Nos últimos 10 anos, o Centro Histórico da antiga Vila Rica foi alvo de ações na Justiça e assinatura de termo de ajustamento de conduta, para evitar o caos completo.