As carrancas do São Francisco terão de afugentar uma multidão de maus espíritos para livrar o rio do destino traçado para ele, que inclui a maior crise de escassez de água já registrada na bacia. De acordo com levantamento do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), os anos de 2013 e 2014 foram os campeões de baixa vazão de água no rio. Os meses de janeiro e fevereiro de 2015 também apresentam os piores números da média histórica para os períodos.
A perspectiva, com base nesses dados, é de que 2015 seja ainda mais escasso na bacia em termos de disponibilidade de água, prejudicando o abastecimento urbano, a irrigação de lavouras, a pesca e a geração de energia. “A situação vai piorar”, resume o diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu. “Não houve recarga dos principais reservatórios do semiárido durante o período de chuvas”, explica.
O nível de água nas represas ao longo do São Francisco é considerado preocupante. Encerrada a safra de chuvas, o reservatório de Três Marias acumula 38% da capacidade, Sobradinho, 22%; e Itaparica, 20%. De acordo com cálculos do ONS, se forem mantidas as atuais vazões em Sobradinho, de 1.300m³ por segundo, o reservatório – um dos maiores do mundo, com mais de 4 mil km² – vai virar sertão, completamente sem água, dentro de cinco meses, em outubro. A solução encontrada foi diminuir a vazão para 900m³, prática que deve entrar em fase de testes a partir de 15 de junho, rebaixando ainda mais o nível do rio. Com essa medida, as autoridades esperam que o reservatório chegue a novembro deste ano – quando deve começar a nova estação chuvosa – com 5,2% de sua capacidade.
Nada garante, porém, que a partir daí a situação se normalize. “Sou otimista, mas, na minha opinião, essas crises, infelizmente, serão mais recorrentes. Essa agenda só tende a crescer”, avalia Andreu. “A irregularidade das chuvas veio para ficar. É muito provável que tenhamos que enfrentar períodos de seca mais frequentes”, diz. “O ciclo hidrológico está alterado, e isso potencializa as fragilidades que já existiam”, completa o diretor-presidente da ANA.
“O momento atual é muito dramático”, alerta o presidente do Comitê da Bacia do São Francisco, Anivaldo Miranda. “Ingressamos nas mudanças climáticas. Teremos cada vez mais estiagens prolongadas e chuvas concentradas. Tudo indica que o cenário futuro não é muito animador”, prevê. “É uma crise que não estamos preparados para enfrentar”, diz Miranda. “Precisamos colocar um programa de adaptação na ordem do dia”, completa.
Fora da lei Desta vez, os órgãos reguladores e a população que depende do rio – avaliada em 15,5 milhões de pessoas – vão precisar de mais que carrancas para superar a crise. De acordo com avaliações de integrantes do comitê, porém, já seria suficiente se a lei fosse cumprida. “Nossa estratégia de médio prazo inclui a imediata implementação dos instrumentos previstos na Lei da Água (n° 9.433)”, anuncia o presidente do colegiado. “Se todo o arcabouço (da legislação) estivesse implementado, não estaríamos passando por essa situação”, diz.
Além de respeitar a lei, na avaliação de Miranda, é necessário adotar novas tecnologias – para diminuir o desperdício de água na irrigação, por exemplo –, mudar a “cultura da gestão dos recursos hídricos” e “produzir” mais água, “investindo pesado na mobilização da população para a recuperação de matas ciliares e redução do processo de desmatamento na bacia” – o que tampouco vai muito além de simplesmente cumprir a lei.
Já para o diretor-presidente da ANA, é necessário incluir ainda mais um elemento na relação com os recursos hídricos: “Falta entender que a água é frágil”, diz. “O Brasil tem essa cultura da abundância. A gente achava que nunca ia passar por isso. Hoje, porém, precisamos entender que mesmo o São Francisco, com essa enormidade de água, é um rio frágil.”
Água suspensa em Alagoas
A Companhia de Saneamento de Alagoas (Cosal) suspendeu o fornecimento de água para oito municípios do sertão, em razão de laudos do Ibama que afirmam a existência de cianobactérias no lago formado pela represa de Xingó. Na semana passada, o Estado de Minas já havia noticiado uma mancha de 28 quilômetros de extensão por sete metros de profundidade no Rio São Francisco, entre Bahia, Alagoas e Sergipe, na qual foi detectada alta densidade de cianobactérias. A proliferação foi atribuída a manobras de retenção de vazão na usina de Paulo Afonso (BA). Em Minas, a situação é preocupante abaixo da represa de Três Marias e no Rio das Velhas, que deságua no distrito de Barra de Guacuí, no Norte.
Três perguntas para..
Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.
A transposição vai funcionar?
Sempre desconfio das soluções megalômanas. Só se lança mão de transposição em última instância. É possível construir a solução dentro da própria bacia. O projeto de transposição prevê a retirada de 26 metros cúbicos por segundo em tempos de escassez, como os de agora. Isso não atende, de forma alguma, as expectativas que foram criadas. Quando houver épocas favoráveis, a vazão poderá aumentar. Entretanto, o cenário futuro não aponta muitos desses tempos favoráveis. Então, o risco é termos feito um brutal investimento para uma obra que talvez nunca venha a cumprir de fato os seus desígnios.
A bacia do São Francisco está preparada para enfrentar o processo de mudanças climáticas?
Não estamos preparados. Precisamos implementar uma agenda de médio e de longo prazo. No médio prazo, precisamos incluir a imediata implementação dos instrumentos da Lei n° 9.433. Os governos estaduais precisam fazer os diagnósticos dos recursos hídricos, aprovar os planos diretores e implantar imediatamente a cobrança pelo uso da água subterrânea. Os comitês locais das bacias de rios estaduais precisam revisar os sistemas de outorgas. Muitos dos afluentes do São Francisco não têm comitês constituídos. A cobrança pelo uso da água praticamente não existe.
O que precisa ser feito para enfrentar a crise?
Primeiro, é preciso aprofundar o conhecimento que temos sobre a crise. Mas já precisamos tirar do papel, urgentemente, o programa de revitalização do rio. Os recursos hídricos nunca foram prioridade no país, mas chegou a hora de inverter a relação. Essa deve ser a prioridade de todos. Na bacia do São Francisco, os governos estaduais precisam assumir o comando da solução da crise. Os órgãos estaduais não estão preparados. É uma situação difícil. Precisamos discutir emergencialmente. Outros países com situações mais severas resolveram o problema. Dá para resolver. Temos centros importantes de estudos de convivência com o semiárido, como a Embrapa. Temos a tecnologia.
Ato vai destacar problemas
O Comitê da Bacia do São Francisco pretende fazer uma série de mobilizações a fim de chamar a atenção para os problemas enfrentados pelo rio. As ações devem ocorrer em 3 de junho, em municípios banhados pelo Velho Chico – Juazeiro (BA), Petrolina (PE), Penedo (AL), Bom Jesus da Lapa (BA) e Lagoa da Prata (MG), entre outros – apontando para a necessidade de revitalização do curso d’água.
A crise hídrica foi tema de discussão em encontro promovido pelo comitê, em Petrolina, na última semana. Formado por 62 membros, o colegiado reúne representações dos usuários, das diferentes esferas do poder público (federal, estadual e municipal), sociedade civil e comunidades tradicionais.
Está no currículo do comitê pelo menos uma experiência bem-sucedida de revitalização, em Minas Gerais, onde estão as nascentes do São Francisco. Está baseada, mais uma vez, na simples aplicação da lei. De acordo com Márcio Tadeu Pedrosa, que coordena as ações do comitê no Alto São Francisco, o trabalho consistiu em cercar nascentes, evitando o pisoteio do gado, recuperar matas ciliares e fazer a contenção de erosões. Em dois anos, segundo ele, as iniciativas garantiram o aumento da “produção de água”, com mais vazão nas nascentes. “Se tivermos o sistema protegido, haverá água, mesmo com as mudanças climáticas”, aposta Pedrosa.
A aplicação da lei é um desafio para os agentes do estado na região. A última ação de fiscalização do Ibama da Bahia na bacia, este mês, na região de Xique-Xique, identificou “diversas captações irregulares”, segundo o superintendente, Célio Pinto. “Aplicamos R$ 328 mil em multas, lavramos 18 autos de infração, apreendemos 900 metros de rede, barcos e petrechos de pesca ilegal”, contou.