Os males da saúde surgem na mesma velocidade do avançar da idade. Sejam doenças mais sérias, como os problemas cardiovasculares e degenerativos, sejam distúrbios com menor gravidade, como a perda do vigor muscular e da memória. Talvez seja pelo entendimento da pouca complexidade que alguns casos não recebam a importância devida. Entram aí os problemas de audição. Um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) comprovou alta incidência do transtorno de processamento auditivo central (Tpac) em 85% de idosos, sendo que a maioria deles não sabia da existência da enfermidade devido a falhas em consultas e avaliações auditivas.
Participaram do estudo pessoas com idade entre 60 e 80 anos, divididas em dois grupos – com e sem comprometimento cognitivo leve (CCL). Os idosos que tinham CCL realizavam atividades cotidianas como comer, vestir e trabalhar, mas se queixavam de lapsos de memória. “Eram pessoas com um risco maior para desenvolver a doença de Alzheimer”, explica Tatiane Eisencraft, autora do estudo.
De acordo com a fonoaudióloga, foi preciso avaliar, por meio de testes comportamentais, o processamento auditivo central (PAC), que está ligado à capacidade de o indivíduo processar sons e falar, por exemplo. Também foram realizados testes eletrofisiológicos, que não dependem de resposta dos pacientes, para complementar a avaliação comportamental. Tatiana explica que não houve diferença significante entre os grupos de idosos, mas uma alta incidência do Tpac em ambos. A taxa média foi de 85%.
A especialista comenta que a avaliação do PAC é muito conhecida e solicitada para crianças em idade escolar que apresentam queixas de compreensão e concentração. Na população idosa, não existe ainda essa “cultura”. Quando reclamam de problemas de audição, as pessoas mais velhas normalmente são encaminhadas para a audiometria, um exame que avalia o quanto elas estão escutando. “Esse exame, muitas vezes, não é suficiente para conseguir detectar as dificuldades, uma vez que avalia apenas uma parte do sistema auditivo”, ressalta.
Mais caro
A fonoaudióloga Bivanete da Fonseca observa que tanto a audiometria quanto a imitanciometria são exames mais prescritos por serem mais baratos. O exame do PAC não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde, chega a custar R$ 300 e não tem cobertura dos planos de saúde, já os mais comuns não saem por mais de R$ 50. “Como é um exame mais recente, os convênios não cobrem e poucos médicos prescrevem por ser mais comum realizá-lo em crianças com déficit de atenção”, diz Bivanete.
Também indicado para detectar o Tpac, o exame P300 é realizado por eletrodos e avalia o potencial auditivo evocado no tronco encefálico, o potencial de média latência (acústica do tálamo) e o potencial de longa latência, que avalia o centro auditivo do córtex, segundo Bivanete. “Esse é bastante caro e chega a custar mais de R$ 1 mil”, acrescenta. Já o sugerido pela pesquisadora da USP é feito na mesma câmara em que é realizada a audiometria, onde o paciente, usando fones de dois canais, escuta em um ouvido sons e ruídos e, no outro, a voz da fonoaudióloga, que pede a ele para repetir algumas palavras. “Esse procedimento verifica a inteligibilidade da fala, a ordenação das palavras, a discriminação dos sons, a resolução e a integração temporal”, descreve.
Rotina
Tatiana Eisencraft defende que a bateria de testes para a avaliação do Tpac faça parte da rotina de exames dos idosos. Sintomas como queixas auditivas, compreensão falha em ambientes ruidosos e de falar ao telefone, e solicitação frequente para a repetição de informações são sinais de que algo está errado.
“Com a detecção do transtorno, é possível realizar o treinamento auditivo, uma reabilitação para essas habilidades que se encontram alteradas, melhorando a capacidade auditiva e, consequentemente, a compreensão da fala e da memória, proporcionando principalmente uma melhora na vida social e na autoestima”, opina.
Falhas também com as crianças
Desconsiderar queixas relacionadas à audição é comum também em consultas médicas de crianças. Observações maternas acerca da saúde dos filhos muitas vezes são confundidas pelo especialistas com excesso de amor, de acordo com estudo recente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pesquisa tentou investigar como as mães lidam com a suspeita, o diagnóstico e o tratamento da surdez dos filhos. Percebeu-se, durante as avaliações, que em alguns casos o tratamento foi retardado por profissionais de saúde simplesmente por terem desconsiderado as queixas maternas.
Participaram da pesquisa 10 mulheres sem problemas de audição, mas com filhos surdos. Nortearam as análises perguntas sobre como, quando e quem suspeitou que a criança tinha problemas auditivos; quando e como foi realizado o diagnóstico; e de que forma ocorreu o encaminhamento para a habilitação. Os dados mostraram que antes da confirmação do diagnóstico a maioria das mães suspeitava do problema – indicado normalmente pela falta de reação do bebê quando exposto a sons ou pela falta de fala –, mas que ele foi ignorado durante consultas médicas.
Para a psicóloga e autora do estudo, Angélica Bronzatto, a surdez é encarada em uma visão socioantropológica como diferencial, sendo o surdo o diferente no que diz respeito à língua e que só será reabilitado por meio da oralidade. “Nem sempre o profissional da área da saúde está preparado para dar um diagnóstico que, para a família, será uma notícia ruim e inesperada”, opina.
Entre as 12 crianças participantes do estudo, seis foram diagnosticadas antes de completarem 1 ano, tempo considerado curto por Angélica levando em conta a realidade brasileira. Outras duas, por terem surdos na família, tiveram acompanhamento de geneticistas ainda durante a gestação. Das quatros restantes, três tiveram o diagnóstico até os 2 anos e uma aos 4 anos.
Em todos os casos, a descoberta deu-se por observação pelas mães. Uma delas, em depoimento, percebeu a deficiência enquanto trocava as fraldas da filha, na época com 6 meses. “O rádio-relógio despertou e ela não se assustou com o barulho”, conta. Depois da suspeita, a mãe passou a testar a audição da bebê fazendo barulhos atrás do ouvido dela. Ao relatar o problema ao médico, ouviu que era apenas uma impressão. A criança só foi diagnosticada com o problema aos 11 meses.
“O que não ocorre, muitas vezes, é uma explicação do que realmente é a surdez, quais as possibilidades de reabilitação, as várias abordagens de trabalho, como o oralismo, a comunicação total e o bilinguismo”, pontua a psicóloga. A especialista afirma também que os pais têm dificuldade de perceber que o filho não está escutando, principalmente quando a perda não é profunda, já que a criança parece responder ao som. “Tem que prestar atenção se a criança responde ao som sem pista visual. Se existe atraso da fala, ele também precisa ser investigado. Não pode confiar apenas na ideia de que outras pessoas da família começaram a falar tarde”, alerta.