Ao longo dos séculos, surtos de doenças infecciosas atacaram a humanidade e deixaram um incontável número de vítimas. Apesar do arsenal tecnológico cada vez mais eficiente, o combate a micro-organismos causadores de doenças letais ainda desafia a ciência. A capacidade de mutação parece colocar os vírus um passo à frente do homem, mas terapias genéticas surgem como uma alternativa promissora para transformar os inimigos em aliados. Uma das estratégias mais recentes nesse sentido é o desenvolvimento de uma vacina intranasal que utiliza vírus programados geneticamente para estimular a produção de anticorpos contra o H1N1 e H5N1, causadores das gripes A e aviária, respectivamente.
O tratamento foi anunciado por pesquisadores dos Estados Unidos e do Canadá na edição de hoje da revista Science Translantional Medicine. Até agora, o método só foi testado em ratos e em furões com os tipos mais violentos das gripes. Se confirmada a efetividade em humanos, ele poderá proteger as populações de pandemias agressivas do H1N1 e do H5N1. Um estirpe mais raro do primeiro micro-organismo desencadeou gripe espanhola em 1918, que matou ao menos 20 milhões de pessoas no mundo. A Organização Mundial da Saúde estima que a gripe aviária tenha matado 370 pessoas desde 2003.
A terapia gênica já é usada para tratar doenças como o câncer. Nela, um vetor — no caso do estudo, um vírus adeno-associados (AVV) — é usado para transportar informações genéticas para células do organismo (veja infográfico). Maria P. Limberis, pesquisadora da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, explica que os AVVs foram escolhidos por não desencadearem doenças em humanos. “Há vários tipos deles, o que chamamos de serotipos, e cada um possui ações que variam conforme a célula. Usamos o serotipo 9 (AAV9), que consegue transferir a carga genética para as células do sistema respiratório”, detalha a integrante do estudo.
Os pesquisadores clonaram anticorpos F16, conhecidos pela eficácia contra a influenza, e os inseriram nos vetores AAV9. A combinação foi injetada no nariz das cobaias. Segundo Limberis, os bichos passaram a produzir mais anticorpos F16 em células específicas do aparelho respiratório. O biólogo Paulo Roberto Martins Queiroz, especialista em genética molecular e professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub), avalia que a aplicação da vacina na mucosa nasofaríngea gera resultados interessantes. “Dessa forma, os vírus adeno-associados podem entregar o anticorpo que vai combater a gripe exatamente no seu ponto de entrada no corpo, conferindo proteção latente.”
Limberis destaca que os vetores são inserido no nariz em forma líquida. “Em estudos anteriores, mostramos que isso afeta células específicas do sistema respiratório, como as ciliadas. Em um curto período de tempo, elas se tornam uma ‘pequena fábrica’ de anticorpos, que são levados à superfície da célula exposta ao ar infectado.”
Segurança Nancy Bellei, professora auxiliar da Universidade de São Paulo e especialista em influenza, explica que os testes de influenza foram realizados em ratos e em furões porque eles conseguem reproduzir os efeitos da doença nos humanos. Um grupo de cobaias foi imunizado, e o outro não. Em intervalos de uma a duas semanas, os bichos foram infectados com doses letais e muito violentas de cepas de H1N1 e H5N1. “Há muita discussão sobre o uso desse vírus em laboratório, pois existe o risco de eles escaparem. Apesar disso, esse grupo de cientistas testou e conseguiu 100% de proteção nas cobaias, diminuindo a carga viral pela metade e até mesmo completamente”, esclarece Bellei.
Os animais não imunizados foram sacrificados uma semana depois da infeção por apresentarem mais de 30% de perda de massa corporal e sintomas como febres intensas e paralisia de membros. “Essa vacina, se der certo, é uma descoberta muito importante. Mas precisa-se primeiro avaliar os custos de trabalhar com o F16, que é um anticorpo monoclonal, altamente específico; e verificar se essa vacina poderia ser aplicada em humanos, pois nossa mucosa pode ser diferente da das cobaias. Outra questão importante é saber quanto tempo ela conseguirá agir contra os vírus, porque eles possuem taxa de mutação muito alta. Se a produção do monoclonal tiver que ser sazonal, os gastos poderão ser muito grandes”, alerta Bellei.
Limberis destaca que ainda são necessários estudos em humanos, mas a pesquisadora acredita que os custos de produção de uma futura vacina não serão tão elevados se comparados aos benefícios. “Nós descobrimos que os ratos ficaram completamente protegidos da influenza. E o mais importante: os ratos e os furões também ficaram protegidos contra outras diversas cepas de H5N1 e H1N1, todas associadas a pandemias. O estoque da vacina é fácil, ela pode ser produzida rapidamente para responder a surtos. Além disso, o método poderá ser aplicado para combater outros vírus futuramente”, diz, projetando o combate, por exemplo, ao vírus da Aids.