Isabela de Oliveira
Brasília – Olhos grandes, focinho fino e afiados dentes à mostra. A cara de mau pertence ao tinhoso, um primo pré-histórico dos crocodilos e jacarés descoberto na Bacia Bauru por uma equipe de paleontólogos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. O trabalho que encontrou o fóssil do novo integrante da família de crocodiliformes foi divulgado na semana passada na revista Cretaceous Research. Predador e carniceiro, o Gondwanasuchus scabrosus – como a espécie foi cientificamente batizada – viveu há 80 milhões anos na região onde hoje fica o Brasil, mais especificamente os estados de Minas Gerais e São Paulo. Conviveu com dinossauros e outras seis espécies terrestres da família Baurusichidae, à qual pertence.
A descoberta foi feita durante escavações na Fazenda Buriti, no município paulista de General Salgado. Lá, foram achados um crânio e uma mandíbula quase completos e em ótimo estado de conservação. Depois de examinar a aparência do bicho, o professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) Thiago Marinho e o pesquisador da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ) Fabiano Iori decidiram apelidá-lo de tinhoso. “Quando o olhamos lateralmente, notamos que os ossos acima das órbitas oculares são inclinados, e isso dá a ele uma cara de mau, de tinhoso. Os dentes são comprimidos e têm serrilhas nas bordas anterior e posterior, como uma faca de cortar carnes. Então, além da cara, ele tinha armas que justificavam o apelido”, conta Marinho.
Naquela época, a área em que o animal viveu era quente e semi-árida. Os pesquisadores descobriram que ele era carnívoro, terrestre e tinha cerca 40 quilos, chegando a alcançar 1,3 metro de comprimento. Ele seria um pouco menor do que um cão da raça São Bernardo, que pode alcançar 90 quilos. No entanto, o que ele não tinha em tamanho tinha em adaptações que o tornavam um predador agressivo.
“O focinho era mais alto do que largo, típico de animais terrestres. Isso lhe permitia arrancar pedaços das presas pelas mordidas. Também tinha membros alongados e posicionados de forma mais vertical, ao contrário dos jacarés, que têm membros posicionados lateralmente. Essa posição dos braços e das pernas fazia com que ele se locomovesse com mais agilidade em terra”, diz Marinho.
Os dentes do G. scabrosus, comprimidos lateralmente, se assemelhavam aos de alguns dinossauros carnívoros. Eles também tinham de cinco a seis sulcos profundos, que deviam aumentar a resistência às quebras, característica considerada pelos autores como única. “Ele não se parecia muito nem com um jacaré nem com um crocodilo, pois o crânio dele era alto, enquanto o dos jacarés e dos crocodilos é baixo e largo. Ele não era um predador aquático. A narina era lateral e anterior ao crânio, o que, mais uma vez, indica hábitos terrestres”, esclarece o pesquisador mineiro. Possivelmente, caçava animais menores, mas também era oportunista. “Se encontrasse uma carcaça, provavelmente ele se alimentaria dela. Essa é uma refeição econômica, em que não precisaria gastar energia para caçar”, indica o autor da descoberta. Segundo ele, a espécie se assemelhava ao dragão-de-komodo, lagarto que também tem focinho oreinirostral e caça atacando as presas com mordidas dilacerantes.
Compreensão da história
Ricardo Pinto, professor de paleontologia da Universidade de Brasília (UnB), que não participou da descoberta, explica que o tinhoso não era um dinossauro. “Ele é do grupo dos crocodilos, que é pouco diversificado e não conta com muitos sobreviventes. No passado, as espécies terrestres desse grupo tiveram mais sucesso”, diz. Para ele, a descoberta é uma ferramenta para ajudar os pesquisadores a reconstruirem cenários do passado e, assim, compreender a história da vida na Terra. Marinho concorda. Uma das conclusões da descoberta é que a área onde a espécie foi encontrada tinha diversas espécies de crocodilos, mas poucas de dinossauros carnívoros.
“Isso é algo curioso. É possível que os crocodilos fossem mais facilmente preservados pelos processos de fossilização nessa região e que fossem muito mais abundantes do que os dinossauros carnívoros também. Mas a diversidade de formas e de hábitos desses crocodilos tem nos surpreendido. Eles ocupavam nichos ecológicos distintos. O G. scabrosus tinha visão tridimensional que devia ajudá-lo a avaliar as distâncias para fazer ataques precisos. Esse tipo de visão é similar à de alguns dinossauros carnívoros. Essas evidências nos permitem sugerir que a espécie poderia ter ocupado o nicho ecológico de dinossauros carnívoros de pequeno porte, muito raros na Bacia Bauru. No Cretáceo, essa era uma terra de crocodilos”, conclui Marinho.
Extenso
A Bacia Bauru é uma formação geológica que se distribui pelos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e nordeste do Paraguai. Abrange uma área de
370 mil quilômetros quadrados.
Nome
O nome do gênero Gondwanasuchus é formado pela denominação do antigo supercontinente Gondwana e da palavra suchus (crocodilo, em grego). Já o termo que define a espécie, scabrosus, é o equivalente em latim para tinhoso.
No tempo dos dinos
Ricardo Pinto - professor de paleontologia da Universidade de Brasília (UnB)
“O G. scabrosus foi contemporâneo dos titanossauros, que incluem alguns dos maiores animais que já caminharam sobre o nosso planeta e cujo peso se aproximava, em alguns casos, de 100t. A descoberta dos fósseis é importante, porque eles permitem que entendamos a história da vida no local. Como algumas espécies fósseis foram localizadas em regiões muito distintas, sabemos que os continentes um dia foram unidos e formaram a Gondwana. Os pequenos fósseis são usados também pelas empresas que querem explorar recursos naturais, como petróleo. Se a Petrobras, por exemplo, quer saber se já chegou às camadas do Período Cretáceo, observa os fósseis nas rochas.”