Shirley Pacelli
Clara tem 5 anos de idade. Por um erro médico no parto, está presa a um corpo que não obedece aos seus comandos – tem paralisia cerebral. Ela demonstra o que quer aos pais por meio da comunicação alternativa. Antes, se ela gostava de um iogurte, era preciso imprimir uma figura, plastificar e colocar em um fichário junto a centenas de outras imagens para que ela escolhesse. Adicionar novidades era um “parto na montanha”, como lembra o pai, Carlos Edmar Pereira, de 35 anos, analista de sistemas e também diretor da clínica de fisioterapia Reamo, em Recife (PE). Ele então decidiu ir atrás de empresas para desenvolver um software alternativo, mas ninguém se interessou em fazer uma plataforma em português. Diante disso, resolveu ele mesmo criar um programa: o Livox (agoraeuconsigo.org). Nele a comunicação acontece a partir de toques em imagens apresentadas na tela do tablet. Fome, medo, desejos, tudo está dividido em contextos para que o deficiente possa expressar a sua vontade.
A experiência com Clara começou com telas de “sim” ou “não” no smartphone e, com o tempo, por meio de um trabalho duro com uma equipe de fonoaudiólogos, Pereira desenvolveu um dos mais completos sistemas de comunicação alternativa para dispositivos móveis. Neste mês, o Livox foi escolhido como o melhor aplicativo de inclusão e empoderamento do Brasil pelo WSA, concurso promovido pela Organização das Nações Unidas. De 23 a 26 de outubro, a empresa representará o Brasil na premiação global no Sri Lanka.
Pereira lembra que no Brasil há 2 milhões de deficientes visuais e 10 milhões de surdos, porém, existe um contingente de 15 milhões de pessoas que não falam porque têm paralisia, autismo, sofreram derrame ou outro mal qualquer. Para ele, elas são invisíveis. “Uma mãe outro dia me contou que foi à padaria com uma blusa com dizeres sobre o autismo e perguntaram a ela se não era aquela doença que as pessoas enxergam em preto e branco”, conta Pereira para exemplificar o desconhecimento popular. Ele explica que o grande benefício do app é atender as mais variadas deficiências: de motora a cognitiva.
O empresário conta que foi nítido o desenvolvimento de Clara depois que ela começou a usar o Livox. Outro dia ele estava lendo um livro sobre a Terra para ela e perguntou se ela sabia o que era magnetismo. Usando a tela do sim/não descobriu que Clara sabia muito mais do que ele imaginava e tinha visto tudo na TV. Com o programa, ele, enfim, pode conversar de verdade com sua filha. O corpo não responde perfeitamente, mas a mente de Clarinha está a mil.
Na página do Livox no Facebook, mães deixam seus depoimentos emocionados sobre a diferença que a plataforma tem feito na comunicação com seus filhos. Com o programa, Marina Gaya, que já foi dona de uma das maiores comunidades do Orkut sobre paralisia cerebral, descobriu que o filho Emanuel, acometido pela doença, torcia para o São Paulo. “É, depois de sete anos e meio de silêncio, enfim, Emanuel e eu ‘batendo papo’. Estou redescobrindo o meu filho e percebendo que tenho em casa um menininho muito do sabido, com opiniões bem formadas e mais consciência do que se passa ao seu redor do que eu tinha sonhado em meus maiores devaneios”, escreveu.
MULTIMÍDIA
Um dos recursos mais incríveis da ferramenta é o intellitouch, o toque inteligente. Há pessoas com deficiência que não têm coordenação do toque. Diante disso, ele calcula quantos dedos estão na tela mais a coordenada que foi tocada e estima qual a intenção real do usuário. Nos próximos meses, deve ser lançada a funcionalidade “capta”, capaz de comandar o app a partir do movimento dos olhos. “Já vi algumas tecnologias por aí, mas, se o usuário mexe a cabeça, perde a calibração, então estamos trabalhando nisso ainda”, conta. Outra novidade que estará pronta no mês que vem é o Now, recurso de inteligência artificial. Baseada no horário e no GPS do tablet, a plataforma mostrará telas com conjuntos sensíveis ao contexto. O da escola é diferente do da casa e assim por diante.
Diferentemente do PECS, o aplicativo é multimídia. Há um banco com 12 mil imagens, mas é possível tirar novas ou pegar na internet e acrescentar ao conteúdo. “Um usuário do Livox, por exemplo, ficava excluído na aula de música. A professora colocou uma flauta no sistema e hoje ele participa. É simples: se forem clicados pontos específicos, ele toca. Se o toque for em qualquer outro ponto fora do desenho da tela, a execução da música é interrompida”, conta.
PREFERÊNCIA PELO ANDROID
Por enquanto, o Livox está disponível só para plataformas Android. Pereira explica que fez essa escolha porque, além da variedade de opções de marcas de tablets, com tamanhos diversos, o custo é menor. “Com Android dá para fazer coisas que não é possível com o iPad. Por exemplo, a mãe pode pegar um arquivo de um filme e colocar no tablet para o filho. No iOS isso é considerado pirataria”, lembra.
O programa começou gratuito, mas hoje tem licença permanente por R$ 1.350, com direito às atualizações. Pereira explica que o valor cobre o custo de diversas tecnologias de terceiros que são utilizadas no app. Com o passar dos anos, teclado virtual, recurso para gravação de áudio, autocontraste e opção de 25 idiomas foram algumas das melhorias implementadas na plataforma. Atualmente, são 2 mil usuários.
Pereira conta que também está criando o Livox profissional, destinado a escolas e hospitais. Dessa forma, médicos poderão fazer perfis com necessidades de comunicação diferentes para o tratamento de pacientes com autismo de autorrendimento, paralisia espástica etc. A licença é dada por tablet. Em uma instituição de ensino, por exemplo, um professor pode usar um aparelho para sua turma inteira. A escola Dia a Dia em Belo Horizonte utiliza o Livox e há clientes também nas cidades mineiras de Juiz de Fora e João Monlevade.
O Livox não está disponível no Google Play, porque, segundo seu criador, é um produto médico, em que é preciso o acompanhamento de profissionais para a sua utilização. Os especialistas avaliam se é preciso um acionador ou um tablet com tela maior. “Muita gente acha que é brincadeira. Acredita que é só jogar na mão da pessoa e ela já sai falando. É preciso um trabalho com fonoaudióloga e com um terapeuta ocupacional. O pai não sabe se o filho vai entender o desenho de uma maçã. Pode ser que ele compreenda somente a foto”, justifica. Quando há interesse em adquirir o aplicativo, a pessoa deve entrar em contato por meio do site.
Do papel ao touch
Em 1985, dois norte-americanos, da empresa Pyramid, Andy Bond e Lori Frost, criaram o Picture Exchange Communication System (pecs.com), mais conhecido como PECS, que é um sistema de comunicação por troca de figura. O modelo promove a comunicação aumentativa (para aqueles que têm alguma dificuldade) ou alternativa (para aqueles que não falam). O PECS ensina o indivíduo a dar uma figura de um item desejado para um parceiro de comunicação. O sistema é dividido em seis fases, com objetivos cada vez mais desafiadores à medida que se passa de uma para outra. Nas fases mais avançadas, os indivíduos são ensinados a responder a perguntas e fazer comentários.
No ano passado, a fonoaudióloga Soraia Cunha Peixoto Vieira, de 37 anos, trouxe o método para o Brasil e abriu a sede da diretoria geral da Pyramid em Belo Horizonte (MG). Ela trabalhou 12 anos com o PECS na Inglaterra. Vieira conta que, nas fases 1 e 2, a pessoa estuda o método e aprende que precisa escolher uma figura e entregá-la ao seu interlocutor. Já na 3, ela discrimina a figura. É para esse ponto que foi criado o aplicativo do PECS para iPad (https://bit.ly/14gLxm4). Há usuários de 18 meses a 83 anos de idade. O app permite incluir novas figuras no banco e tem opção de gravar voz.
Outro aplicativo da Pyramid disponível é o Working4 (https://bit.ly/1b9sOKW), com tradução para o português e custo de US$ 2,99. Com ele, é possível reforçar comportamentos positivos – para ter um pedido atendido é preciso fazer tarefas específicas discriminadas no programa.
Na fase 4, o PECS ensina a formar frases juntando duas figuras: “Eu quero” e “comer”, por exemplo. Na 5, o usuário responde a perguntas e na 6 ele faz comentários sobre o cotidiano. A equipe já trabalha para criar aplicativos para as próximas fases, mas ainda não há previsão do lançamento.
Vieira acredita que é importante fazer um treinamento do método para tirar total proveito do PECS, especialmente os pais, para poderem usar com os filhos em todos os lugares. “O método é o mesmo para todo mundo, mas cada um vai evoluir do seu jeito”, ressalva.