Dois mil anos antes de o Egito começar a imortalizar faraós e altos funcionários do governo, um povo simples sul-americano já protegia seus mortos da decomposição com sofisticadas técnicas de mumificação. Para os chinchorros, caçadores-coletores que viviam na costa da região onde hoje ficam Chile e Peru, todos mereciam que seus corpos fossem incorruptíveis. Mesmo fetos natimortos recebiam o elaborado tratamento pós-morte. Mas o que ficou intacto por mais de 7 mil anos, agora corre o risco de desaparecer. Culpa das mudanças climáticas, que estão destruindo as múmias até hoje bem preservadas.
Na última década, os corpos mumificados, que datam de 5050 a.C., começaram a se deteriorar rapidamente. Há quase 120 deles na coleção da Universidade de Tarapacá, no Museu Arqueológico de Arica, no Chile. Foi lá que os cientistas observaram uma degradação acentuada e a um ritmo alarmante. Em alguns casos, espécimes estavam simplesmente se transformando em lodo negro. “Nos últimos 10 anos, o processo acelerou”, conta Marcela Sepulveda, professora de arqueologia e pesquisadora do Laboratório de Análise Arqueométrica da universidade. “É muito importante ter mais informações sobre as causas disso e apontar para a universidade e o governo o que é necessário fazer para preservar as múmias chinchorros para o futuro.”
Para ajudar a descobrir o que está destruindo as múmias, Sepulveda chamou especialistas da Europa e da América do Norte, incluindo Ralph Mitchell, professor de ciências aplicadas e engenharia da Universidade de Harvard. Ele tem usado seu conhecimento em microbiologia ambiental para encontrar os culpados por danos detectados em peças como manuscritos históricos, paredes da tumba do rei Tutancâmon e até roupas espaciais do projeto Apollo, que levou o homem à Lua. “Sabíamos que as múmias estavam se degradando, mas ninguém entendia o motivo. Esse tipo de degradação nunca havia sido estudado. Queríamos responder a duas questões: o que estava causando isso e o que poderíamos fazer para prevenir futuros danos”, explica Mitchell.
De acordo com Sepulveda, preparar as múmias foi um processo complicado que demandou tempo e muito conhecimento. Os chinchorros extraíam o cérebro e outros órgãos, reconstruíam o corpo com fibra, enchiam a cavidade craniana com cinza ou palha e usavam lascas de cana para costurar tudo, conectando a mandíbula ao crânio. Um pedaço de pau mantinha a espinha reta. O embalsamador restaurava a pele, às vezes juntando as partes do corpo com epiderme de leão-marinho e outros animais. Finalmente, a múmia era coberta com uma pasta: preta, feita de manganês, nas múmias mais antigas; vermelha, de ocre, nos exemplares seguintes; e marrom, aplicada nos espécimes mais recentes.
Micróbios
A primeira coisa de que a equipe de Mitchell precisava eram evidências físicas, algo que Sepulveda forneceu em forma de amostras – tanto de pele degradada quanto de intacta – retiradas de múmias da coleção do museu. A tarefa de receber a encomenda incomum ficou a cargo de Alice DeAraujo, pesquisadora do laboratório de Mitchell, cuja especialidade é analisar amostras biológicas. Para ela, não restou dúvidas: a origem dos danos era microbiana. “A palavra-chave que usamos na microbiologia é oportunismo. O micróbio está sempre em nossos corpos, mas, quando há mudanças ambientais, ele se torna um oportunista”, explicou Mitchell.
Primeiramente, os pesquisadores levantaram uma série de questões: “O microbioma da pele das múmias é diferente da pele de humanos normais? Há uma diferença na população dos micróbios? Eles se comportam distintamente? Toda a microbiologia deles é desconhecida”, admite o especialista de Harvard. Os cientistas, então, isolaram os micróbios presentes nos dois tipos de amostra. Mas, como só havia uma quantidade limitada de epiderme das múmias, eles precisaram de um substituto para o próximo passo: cultivar os organismos no laboratório e testá-los para ver o que ocorria quando as amostras eram expostas a diferentes níveis de umidade. Usando pele de porco, DeAraujo iniciou uma série de testes. Depois de determinar que a epiderme do animal começava a degradar após 21 dias em um ambiente muito úmido, ela repetiu o resultado usando pele das múmias. Confirmou-se que a elevada umidade do ar desencadeia o processo de destruição.
A descoberta era consistente com algo que Sepulveda reportou: os níveis de umidade em Arica, onde o museu está localizado, nunca estiveram tão altos. As análises de DeAraujo sugerem que o ideal para as múmias é que o ambiente de exposição fique entre 40% e 60%. Qualquer coisa acima disso deflagra a degradação. Abaixo dessa margem, porém, também há riscos de destruição por acidificação. Testes futuros são necessários para verificar ainda o impacto da temperatura e da luz. Os resultados ajudarão a equipe do museu a afinar os níveis de temperatura, umidade e luz para preservar a coleção, disse Mitchell. Contudo, um desafio maior está pela frente.
De acordo com Sepulveda, existem centenas de múmias chinchorros enterradas apenas abaixo da superfície de areia nos vales da região. Elas sempre são descobertas durante novas construções e projetos públicos. Assim, o aumento da umidade pode fazer com que essas múmias ainda não recuperadas fiquem suscetíveis aos danos. Enquanto o processo de degradação é relativamente controlado no museu, essa é uma tarefa muito mais complicada quando se está exposto ao ambiente natural. “E quanto aos artefatos que ainda estão lá fora?”, questiona Mitchell. “Como preservá-los no ambiente externo ao museu? Há uma resposta científica para proteger esses importantes objetos históricos dos efeitos devastadores das mudanças climáticas?”, pergunta. Para ele, a solução para o desafio de preservar as múmias de 7 mil anos pode estar na ciência do século 21. “Você tem todos esses corpos lá fora e está se perguntando como evitar que se decomponham. É quase um problema forense”, acredita.
SAIBA MAIS: PESCADORES PRÉ-INCAS
Os chinchorros eram pescadores sedentários que ocuparam a costa árida do Nordeste do Chile ao Sudeste peruano, incluindo o Deserto do Atacama. Ao longo de milênios, esse povo pré-inca subsistiu usando uma combinação de pesca, caça e coleta – a palavra chinchorro significa “barco de pesca”. Os primeiros registros arqueológicos da cultura datam de 7 mil anos antes de Cristo, na localidade de Acha. O processo de mumificação provavelmente teve início depois, por volta de 5 mil a.C. Isso faz das múmias chinchorros as mais antigas do mundo. Os aparatos resgatados nos sítios arqueológicos indicam um estilo de vida simples, mas com domínio de ferramentas para pesca. Era do mar que retiravam 90% de sua dieta, conforme indicaram análises dos cabelos e ossos das múmias. Cinco por cento da alimentação vinha de animais terrestres, e os outros 5% de plantas. Suas comunidades eram compostas por pequenos grupos com núcleo familiar único. Cada povoado abrigava de 30 a 50 pessoas, e não há evidência de estratificação social. Os últimos registros dos chinchorros datam de 1,1 mil a.C.
Na última década, os corpos mumificados, que datam de 5050 a.C., começaram a se deteriorar rapidamente. Há quase 120 deles na coleção da Universidade de Tarapacá, no Museu Arqueológico de Arica, no Chile. Foi lá que os cientistas observaram uma degradação acentuada e a um ritmo alarmante. Em alguns casos, espécimes estavam simplesmente se transformando em lodo negro. “Nos últimos 10 anos, o processo acelerou”, conta Marcela Sepulveda, professora de arqueologia e pesquisadora do Laboratório de Análise Arqueométrica da universidade. “É muito importante ter mais informações sobre as causas disso e apontar para a universidade e o governo o que é necessário fazer para preservar as múmias chinchorros para o futuro.”
Para ajudar a descobrir o que está destruindo as múmias, Sepulveda chamou especialistas da Europa e da América do Norte, incluindo Ralph Mitchell, professor de ciências aplicadas e engenharia da Universidade de Harvard. Ele tem usado seu conhecimento em microbiologia ambiental para encontrar os culpados por danos detectados em peças como manuscritos históricos, paredes da tumba do rei Tutancâmon e até roupas espaciais do projeto Apollo, que levou o homem à Lua. “Sabíamos que as múmias estavam se degradando, mas ninguém entendia o motivo. Esse tipo de degradação nunca havia sido estudado. Queríamos responder a duas questões: o que estava causando isso e o que poderíamos fazer para prevenir futuros danos”, explica Mitchell.
De acordo com Sepulveda, preparar as múmias foi um processo complicado que demandou tempo e muito conhecimento. Os chinchorros extraíam o cérebro e outros órgãos, reconstruíam o corpo com fibra, enchiam a cavidade craniana com cinza ou palha e usavam lascas de cana para costurar tudo, conectando a mandíbula ao crânio. Um pedaço de pau mantinha a espinha reta. O embalsamador restaurava a pele, às vezes juntando as partes do corpo com epiderme de leão-marinho e outros animais. Finalmente, a múmia era coberta com uma pasta: preta, feita de manganês, nas múmias mais antigas; vermelha, de ocre, nos exemplares seguintes; e marrom, aplicada nos espécimes mais recentes.
Micróbios
A primeira coisa de que a equipe de Mitchell precisava eram evidências físicas, algo que Sepulveda forneceu em forma de amostras – tanto de pele degradada quanto de intacta – retiradas de múmias da coleção do museu. A tarefa de receber a encomenda incomum ficou a cargo de Alice DeAraujo, pesquisadora do laboratório de Mitchell, cuja especialidade é analisar amostras biológicas. Para ela, não restou dúvidas: a origem dos danos era microbiana. “A palavra-chave que usamos na microbiologia é oportunismo. O micróbio está sempre em nossos corpos, mas, quando há mudanças ambientais, ele se torna um oportunista”, explicou Mitchell.
Primeiramente, os pesquisadores levantaram uma série de questões: “O microbioma da pele das múmias é diferente da pele de humanos normais? Há uma diferença na população dos micróbios? Eles se comportam distintamente? Toda a microbiologia deles é desconhecida”, admite o especialista de Harvard. Os cientistas, então, isolaram os micróbios presentes nos dois tipos de amostra. Mas, como só havia uma quantidade limitada de epiderme das múmias, eles precisaram de um substituto para o próximo passo: cultivar os organismos no laboratório e testá-los para ver o que ocorria quando as amostras eram expostas a diferentes níveis de umidade. Usando pele de porco, DeAraujo iniciou uma série de testes. Depois de determinar que a epiderme do animal começava a degradar após 21 dias em um ambiente muito úmido, ela repetiu o resultado usando pele das múmias. Confirmou-se que a elevada umidade do ar desencadeia o processo de destruição.
A descoberta era consistente com algo que Sepulveda reportou: os níveis de umidade em Arica, onde o museu está localizado, nunca estiveram tão altos. As análises de DeAraujo sugerem que o ideal para as múmias é que o ambiente de exposição fique entre 40% e 60%. Qualquer coisa acima disso deflagra a degradação. Abaixo dessa margem, porém, também há riscos de destruição por acidificação. Testes futuros são necessários para verificar ainda o impacto da temperatura e da luz. Os resultados ajudarão a equipe do museu a afinar os níveis de temperatura, umidade e luz para preservar a coleção, disse Mitchell. Contudo, um desafio maior está pela frente.
De acordo com Sepulveda, existem centenas de múmias chinchorros enterradas apenas abaixo da superfície de areia nos vales da região. Elas sempre são descobertas durante novas construções e projetos públicos. Assim, o aumento da umidade pode fazer com que essas múmias ainda não recuperadas fiquem suscetíveis aos danos. Enquanto o processo de degradação é relativamente controlado no museu, essa é uma tarefa muito mais complicada quando se está exposto ao ambiente natural. “E quanto aos artefatos que ainda estão lá fora?”, questiona Mitchell. “Como preservá-los no ambiente externo ao museu? Há uma resposta científica para proteger esses importantes objetos históricos dos efeitos devastadores das mudanças climáticas?”, pergunta. Para ele, a solução para o desafio de preservar as múmias de 7 mil anos pode estar na ciência do século 21. “Você tem todos esses corpos lá fora e está se perguntando como evitar que se decomponham. É quase um problema forense”, acredita.
SAIBA MAIS: PESCADORES PRÉ-INCAS
Os chinchorros eram pescadores sedentários que ocuparam a costa árida do Nordeste do Chile ao Sudeste peruano, incluindo o Deserto do Atacama. Ao longo de milênios, esse povo pré-inca subsistiu usando uma combinação de pesca, caça e coleta – a palavra chinchorro significa “barco de pesca”. Os primeiros registros arqueológicos da cultura datam de 7 mil anos antes de Cristo, na localidade de Acha. O processo de mumificação provavelmente teve início depois, por volta de 5 mil a.C. Isso faz das múmias chinchorros as mais antigas do mundo. Os aparatos resgatados nos sítios arqueológicos indicam um estilo de vida simples, mas com domínio de ferramentas para pesca. Era do mar que retiravam 90% de sua dieta, conforme indicaram análises dos cabelos e ossos das múmias. Cinco por cento da alimentação vinha de animais terrestres, e os outros 5% de plantas. Suas comunidades eram compostas por pequenos grupos com núcleo familiar único. Cada povoado abrigava de 30 a 50 pessoas, e não há evidência de estratificação social. Os últimos registros dos chinchorros datam de 1,1 mil a.C.