Mesmo séculos depois da vinda dos primeiros estrangeiros para terras tupiniquins, os traços da colonização permanecem vivos nos genes da população do país. Um grande estudo liderado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revela ser possível rastrear a origem genética dos brasileiros até suas raízes na Europa e na África. A análise do genoma de quase 6,5 mil pessoas, publicada ontem na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas), mostra como o tráfico de escravos distribuiu indivíduos de diferentes origens do continente africano pelo Brasil, quantifica a variedade do sangue europeu distribuído pelo sul do território e revela como o processo de miscigenação se deu nos cinco séculos de história do país.
Maior estudo realizado até hoje sobre a diversidade genômica de populações brasileiras, o trabalho usou como base o banco de dados do Projeto Estratégico do Ministério da Saúde EPIGEN-Brasil, que há décadas acompanha 6.487 pessoas de três cidades: Salvador (BA), Bambuí (MG) e Pelotas (RS). O genoma dos voluntários foi comparado à informação genética de cerca de 2 mil nativos de diferentes regiões da Europa e da África, e a similaridade entre o sangue brasileiro e o estrangeiro revelou como a colonização moldou os traços dos habitantes de grande parte do país.
Entre os moradores do Nordeste, por exemplo, a ascendência europeia está ligada, principalmente, à Península Ibérica, onde ficam Portugal e Espanha. O dado reflete o início da colonização brasileira, em que portugueses se dirigiam em massa para a região, que abrigava a primeira capital do Brasil, Salvador, e concentrava as atividades econômicas.
Já no Sul do país, o DNA europeu preponderante é de uma região mais ampla do Velho Continente, que se estende até o Oriente Médio. Segundo os autores, um reflexo da onda migratória ocorrida entre os séculos 19 e 20. Até 1870, os negros formavam o maior grupo étnico no Brasil, mas o cenário modificou-se pela onda de italianos, alemães e outros europeus que se deslocaram mais para o Sul e o Sudeste. Nessa época, cerca de 4 milhões de imigrantes (número semelhante ao de escravos africanos trazidos nos séculos anteriores) vieram para o país.
Mistura desigual
O trabalho mostra que a migração interna não conseguiu apagar as evidências desses processos, pois os brasileiros têm uma tendência a ter filhos com pessoas de origem genética similar, seja pela região em que eles estão, seja por questões sociais. “Essa origem (genética) poderia ter se perdido, mas, pela alta resolução dos nossos estudos, vemos que ela ainda está presente”, explica o professor Eduardo Tarazona Santos, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG.
A miscigenação é mais notável na região Nordeste do país, onde a ancestralidade africana chega a 50%. Essa proporção é mais desigual no Sul brasileiro, cuja população tem 70% de sangue europeu. “É como se Salvador fosse uma democracia racial mais perfeita, na qual todo mundo se casa com todo mundo, independentemente da cor e da origem”, afirma Santos.
Os níveis de miscigenação podem variar por região, mas as provas de que o Brasil é o país da mistura estão até mesmo onde não se pode ver. O estudo revelou que os traços da genealogia africana podem ser identificados inclusive em pessoas de identidade branca, com traços típicos de origem europeia. Esse componente de ancestralidade africana é diferente do encontrado em populações dos Estados Unidos ou do Caribe, pois deriva de diferentes rotas do tráfego de escravos.
O detalhamento obtido a partir das informações genéticas de pessoas com ancestralidade africana era tão grande, que foi possível traçar as antigas rotas intercontinentais de escravos a partir do genoma dos indivíduos estudados. Assim, os genes de origem negra dos nordestinos são mais semelhantes aos dos indivíduos da área sudanesa, justamente de onde partia a principal rota de escravos que levava à região. Já a genética de afro-brasileiros do Sudeste se assemelha à dos bantus, nativos da área compreendida entre os territórios de Congo, Angola e Moçambique.
Esta é a primeira vez que um estudo mostra com tamanha precisão o componente africano do sangue brasileiro. “De certa forma, os dados encontrados pelos pesquisadores indicam que o tráfico interno após 1850, com a proibição do tráfico transatlântico, não tinha o desenho que a história tradicional descrevia, de uma grande rota de migração de escravos do Nordeste em direção ao Sudeste. Ao menos, não na intensidade que se pensava”, analisa Cacilda da Silva Machado, professora do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De acordo com a historiadora, o trânsito de escravos no território brasileiro ocorria entre fazendas de uma mesma região. “E estudos sobre o período pós-abolição vêm indicando que as migrações de ex-escravos e seus descendentes também eram de pequena distância”, acrescenta.
Saúde
Um dos objetivos do EPIGEN-Brasil é constatar a influência do ambiente e da ancestralidade na incidência de determinadas doenças crônicas. “A particularidade do nosso estudo no Brasil é que a gente tem uma população muito miscigenada, então isso transforma o trabalho em algo diferente. A gente não sabe se, numa população miscigenada, as associações são diferentes das populações caucasianas”, acredita Maria Fernanda Lima Costa, coordenadora-geral do projeto.
Os pesquisadores ressaltam, no entanto, que ainda faltam muitas peças do grande quebra-cabeça que forma o sangue brasileiro. O levantamento não pode descrever, por exemplo, a marcante onda de imigrantes japoneses que se instalaram no Sudeste há um século ou a forte presença de indivíduos com origem indígena no Norte do país. Entre os traços genéticos dos voluntários que participaram do projeto, menos de 8% podem ser relacionados à ancestralidade nativa do continente sul-americano.
Identidade
Outro estudo feito com base nas informações do projeto EPIGEN-Brasil, publicado em abril, mostrou que a associação de fenótipo que cada indivíduo tem de si mesmo é proporcional à quantidade de sangue africano presente na história dos seus ancestrais, ou seja, quanto menos misturado for o genoma de uma pessoa, maior é a chance de que ele se identifique com a etnia preponderante na sua origem. Quando o nível de miscigenação é muito alto, essa relação fica menos definida.