Grandes diplomatas
Não há mulheres entre os biografados no livro editado em 2024 por Hubert Védrine – chanceler da França no gabinete do primeiro-ministro Lionel Jospin
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Em “Escolhas difíceis”, livro de 2014 sobre sua gestão como secretária de Estado, Hillary Clinton ridiculariza sutilmente Serguei Lavrov, chanceler da Rússia desde 2004: “ele estava sempre bronzeado e bem-vestido”. Um dos propósitos da obra era contribuir para que a ex-secretária de Estado ganhasse, em 2016, a nomeação do partido democrata para as eleições presidenciais, que viria a disputar e perderia para Donald Trump. O livro de memórias procura provar sua firmeza com a Rússia, considerada ainda então pelos Estados Unidos como seu principal rival.
Contou-me um diplomata russo que, nas reuniões entre Hillary Clinton e Serguei Lavrov, era penoso constatar como a secretária de Estado lidava de forma superficial com os assuntos, os quais parecia não dominar. O livro de Clinton e o comentário do colega russo demonstram que a disputa entre grandes potências se dá também no plano da rivalidade pessoal entre chanceleres, competindo entre si sobre quem transmite a imagem de mais habilidoso.
Não há mulheres entre os biografados no livro editado em 2024 por Hubert Védrine – chanceler da França no gabinete do primeiro-ministro Lionel Jospin, durante a presidência de Jacques Chirac –, intitulado Grandes diplomatas: os mestres das relações internacionais, de Mazarino aos nossos dias.
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Poucos dos perfis ali destacados foram diplomatas de carreira. Muitos ocuparam o cargo de ministro das Relações Exteriores. Dos vinte homens celebrados no livro por vinte historiadores ou jornalistas franceses – dos quais apenas quatro mulheres – 12 trabalharam a serviço de França, Alemanha, Áustria ou Inglaterra, e dois a serviço dos Estados Unidos. Dos seis restantes, Kofi Annan e Boutros Boutros-Ghali foram secretários-gerais da Organização das Nações Unidas; três foram chanceleres da Rússia; e um, da China.
Para um diplomata brasileiro, salta aos olhos a falta de uma representatividade geográfica mais ampla. Não há razão, por exemplo, para a ausência do barão do Rio Branco. Sua gestão como chanceler, entre 1902 e 1912, foi mais bem-sucedida e de resultados mais duradouros do que a da maioria dos biografados.
A celebridade parece ter sido um critério para a seleção. No prefácio, Védrine orgulha-se de que podem ser encontrados no livro “quatro nomes de notoriedade mundial: Talleyrand, Metternich, Bismarck e Kissinger”. O culto à notoriedade pode ter influenciado também o espírito às vezes pouco crítico das análises. Lemos no artigo sobre Henry Kissinger que “em 1973, ele tinha virado uma celebridade mundial, uma figura da cultura pop americana”. São apenas afloradas as acusações de crimes de guerra, atribuídas à “ala esquerda do partido democrata”.
Há traços comuns às diferentes trajetórias. Mazarino, Kissinger e Brzezinski, estrangeiros tendo de se adaptar à nova pátria, enfrentam dificuldades de inserção na elite local. Sobre Mazarino, italiano que foi primeiro-ministro da França na infância e juventude de Luís XIV, a historiadora Simone Bertière escreve: “sua inteligência é de um poder tão inquietante que ele é obrigado a escondê-la”, sem que possa “dividir com ninguém suas visões anticonformistas”. Molotov e Zhou Enlai são, em razão da visibilidade de seus cargos, as figuras políticas mais famosas de seu país no exterior, depois de Stalin e Mao Tsé-Tung. Isso basta para despertar a ira e o sadismo de seus chefes. A maioria dos biografados precisa acomodar-se ao temperamento de seus reis ou presidentes e aceitar humilhações. Vários são considerados cortesãos pelos contemporâneos.
O artigo mais estimulante é o último, que retrata Lavrov, único dos vinte “grandes diplomatas” ainda vivo e ainda em função. A inclusão de seu nome em obra publicada após o início da guerra na Ucrânia e das sanções ocidentais contra a Rússia é, em si, reveladora de sua importância. A autora do artigo, Sylvie Bermann, foi a primeira mulher embaixadora da França, sucessivamente, na China, no Reino Unido e na Rússia.
Segundo Bermann, Serguei Lavrov se insere “na linhagem de ministros extremamente competentes e temíveis na defesa dos interesses de seu país”, como Andrei Gromiko – um dos grandes ausentes do livro, admite Hubert Védrine no prefácio – e Evgueni Primakov. Lavrov compartilharia a visão desses predecessores de que a Rússia é “uma fortaleza assediada”, à qual interessaria, por isso, um multilateralismo fortalecido.
Como Kissinger em seu tempo, Lavrov pertence à cultura pop: “é uma das figuras mais populares e respeitadas na Rússia; há camisetas com seu rosto”. Sylvie Bermann especula não haver “nem amizade nem proximidade entre ele e Putin”. Sustenta que Lavrov “executa a política decidida no Kremlim, mais do que a elabora”, tendo sido a Chancelaria “marginalizada” nos dois temas de política externa mais importantes para a Rússia nos últimos anos – Síria e Ucrânia.
Putin e Lavrov “compartilham a nostalgia de uma Rússia poderosa e o ressentimento contra o Ocidente e as ações da Otan, com seus avanços em direção às fronteiras russas”. Pergunta-se a embaixadora que imagem o chanceler deixará na História. Avalia que isso dependerá do resultado da guerra na Ucrânia: “Quando voltar o tempo da diplomacia, é possível que ele conheça uma forma de reabilitação”.
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Em suas conclusões, Hubert Védrine critica discretamente a diplomacia europeia da atualidade, para a qual seria tabu, desde 2022, preparar o futuro das relações com Moscou, no pós-guerra da Ucrânia. De forma presciente – o livro foi preparado em 2023 – declara que esse tema é menos inabordável para os Estados Unidos, “para os quais a prioridade é fazer face ao desafio chinês”.
* O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro de 2024, o livro “Geografia do tempo”.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.