Qualquer semelhança das grandes crises sanitárias que vivemos com o Inferno de Dante não é mera coincidência. Céu e inferno são vividos aqui mesmo, bem debaixo do nosso nariz. Há pouco mais de um ano, vimos um bando de gente na porta dos quartéis clamando por golpe militar. No princípio, parecia tratar-se apenas de bizarrices de militares reformados, saudosos dos anos 1970 e já com certo grau de distúrbio cognitivo.
Os militares da ativa, por sua vez, viram o movimento com simpatia e, de certa forma, como um afago no ego ressentido pelas imagens televisivas de ossadas desenterradas de túmulos em cemitérios clandestinos, fruto de mazelas de um passado recente.
Deu no que deu! Uma emergência política que pegou todos de toga na mão. O dia seguinte foi de juntar os cacos e tentar entender como as coisas chegaram onde chegaram.
Ainda obnubilados pelo gancho de direita no queixo da nossa jovem democracia, saímos das cordas para o canto do ringue, salvos pelo gongo. Ao voltarmos para a luta, tentamos um direto de esquerda, mas continuamos a cometer os mesmos erros que quase nos levaram a nocaute.
Epidemias expõem fragilidades pouco palatáveis aos governantes de plantão. Dados e tendências epidemiológicas, assim como o zumbido de um mosquito e o tiro de um fuzil, não são perceptíveis aos ouvidos de todos. Dessa forma, catástrofes anunciadas explodem por combustão espontânea, incompetência ou negligência de alguém. A solução, geralmente, tem sido a mesma, chamar as Forças Armadas.
Apesar dos problemas se repetirem ano após ano, seja para correr atrás de bandido, espantar garimpeiro de terras indígenas, matar mosquito ou desenterrar soterrados por catástrofes climáticas, os salvadores do pátria amada Brasil estão nos quartéis. Depois deles, só clamando a Deus!
A pergunta é óbvia: quem está ganhando com esse ciclo vicioso caótico?!
Se para governar é preciso comprar 50% mais 1, ou eventualmente 2/3 dos detentores de mandatos legislativos, está aí uma boa dica de quem “secretamente” ganha com a cronificação da nossa cruz. Porém, quem lhes ofertou o prego, o martelo e a madeira ilegal para produzir nosso calvário fomos nós mesmos.
Portanto, trata-se de um problema nosso! Se nossos filhos padecem de doenças evitáveis por vacinas e elegemos políticos anti-vacinas, colheremos doença e morte. Colhemos o que plantamos. Está posto o cenário do Inferno de Dante.
Chamar militares para resolver problemas que são da alçada de estados e municípios, dá a eles um capital político extremamente perigoso para a democracia. A mensagem que fica para a população é de que quem resolve os problemas do país são as Forças Armadas. Daí a concentração de uma massa de pessoas equivocadas na porta de quarteis clamando por golpe militar, como se essa fosse a solução dos problemas estruturais da nação.
Portanto, ao chamarmos a Aeronáutica para montar tendas de hidratação e o Exército para matar mosquito e suprir as fragilidades do sistema de saúde, estamos reforçando para a população a ideia de que a solução é militarizar o Estado e demitir 81 senadores e 513 deputados. Chega uma hora que eles próprios e a população acreditam nisso e aí a lambança fica maior. O poder é doce e afeiçoa-se facilmente a ele. Geralmente, demora de 20 a 30 anos para que todos, inclusive os militares, percebam a enrascada em que se meteram.
Não é por coincidência que, historicamente, grandes catástrofes epidêmicas são sucedidas por guerras e golpes de estado. Fumacês dão capital político a governadores e prefeitos incompetentes. Mosquitos que já derrotaram inúmeros exércitos poderosos, dão palanque para quem não tem “armas” e nem competência constitucional para combatê-los.