Qual é a primeira imagem que vêm a sua cabeça quando você pensa na cultura gaúcha? E as características dos rostos e corpos das pessoas que ali nasceram? Muito possivelmente você não vai pensar na Sheron Menezzes e no Ronaldinho Gaúcho não é mesmo? Até por que o estado performa midiaticamente uma herança cultural bem eurodescendente. Um orgulho pela branquitude que está sempre em evidência, passando a imagem que a região sul é um pedacinho da Europa nesse país tropical chamado Brasil.
Por isso não me surpreende em nada que em uma visita ao Rio Grande do Sul ontem, quarta-feira (15/5), o presidente Lula afirmou que ficou impressionado com a quantidade de pessoas gauchas negras que ele viu nos últimos dias. A declaração foi feita em evento organizado pelo Governo Federal com o propósito de anunciar o “Vale Reconstrução”, um pagamento de parcela única no valor de R$ 5,1 mil às famílias que perderam bens nas enchentes.
Lula disse que “não tinha noção” que o Sul do país tinha tantos negros. “Falei para Janja domingo: ‘É impressionante. Eu não tinha noção que o Rio Grande do Sul tinha tanta gente negra’. E no ‘Fantástico’ apareceu muita gente. Eu falei: ‘Não é possível’. E aí, a Janja me falou: ‘É porque são os mais pobres, que moram nos lugares mais arriscados de serem vítimas dessas coisas”, afirmou o presidente durante discurso.
Na medida que eu ia escutando a fala do Lula me lembrava de uma fala da Ministra Anielle Franco no mês de janeiro em que a mesma citava os efeitos do racismo ambiental nas fortes chuvas que afetaram a população fluminense. É lógico que a supremacia branca e de direita rebateu fazendo chacota com a fala da ministra. É mais fácil e cruel fingir não ver quais são as características das pessoas mais afetadas pela falta de moradia digna, saneamento básico e que são obrigadas a se sujeitarem a viverem em zonas de risco à vida e portanto mais afetadas com as mudanças climáticas. Não é mesmo?
Não precisa ser nenhum especialista climático para entender a forma desigual que as pessoas são impactadas pelas chuvas. Basta não ser daltônico por conveniência enquanto assiste um noticiário. Assim como fez o chefe do executivo enquanto assistia TV no domingo à noite, em seu momento de descanso em casa ao lado da esposa. É obvio que os efeitos negativos das chuvas, como alagamento, deslizamento de encostas, soterramento e inundações impactam muito mais os pobres do que os ricos e a pobreza tem cor, inclusive nos estados em que a maioria da população é formada por eurodescendentes que se autodeclaram brancos.
A população brasileira é formada em sua maioria por pessoas negras, mas é no Sul que essa parcela é minoria. É possível perceber que mesmo sendo minoria são visivelmente e proporcionalmente mais impactadas pelos efeitos negativos das fortes chuvas nos últimos dias a ponto de serem vistas em um telejornal. A verdade é que fora desse contexto catastrófico vemos muito poucos negros quando se fala da intelectualidade, cultura e política gaúcha. Fica parecendo que todos gaúcho tem a pele branca e os olhos claros, o que definitivamente não é verdade.
Segundo o IBGE de 2022, o Rio Grande do Sul tem mais de dois milhões de pessoas que se autodeclaram negras, o que representa 20% da população. Como podemos perceber, pessoas essas que só possuem um destaque nacional nesse momento catastrófico. Essa fala do Lula é a tradução dos efeitos do racismo ambiental e climático que é constituído por injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. Os efeitos das chuvas afetam todas as pessoas independente das características físicas, mas afeta de forma desigual. Portanto o recomeço, a reconstrução será desigual pra quem tem uma reserva econômica, pra quem tem uma formação que permite trabalhar home office, pra quem tem nível de escolaridade maior, enfim é preciso tratar de forma desigual quem foi mais atingido e ofertando maior suporte para quem precisa mais. Essa é uma das tantas importâncias de se entender os efeitos do racismo ambiental que vêm sendo pesquisado em outros países a décadas e no Brasil mais recentemente.
Assim como a humanidade, criou e organizou os territórios também criou, produziu, organizou e banalizou o racismo. Inseriu socialmente as pessoas negras em ambientes violentos, hostis, insalubres e vulneráveis . A crise climática é também humanitária e tem impacto direto na vida da população negra assim tal qual o desemprego, a baixa escolaridade e o falta de acesso aos serviços de saúde e moradia. Ao admitir que ficou surpreso Lula ao meu ver admite a eficiência que aquela representação de estado branco têm quando se trata de invisibilizar os negros nascidos, criados e sobreviventes ao racismo praticado pelo estado.