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Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

Entre couves, bacons, liberais e progressistas

A moral do suco verde é simples: só pode errar quem é o outro

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O ser humano é uma corda bamba entre o animal e o super-homem. Traduzindo para a filosofia popular: estamos sempre acendendo uma vela para Deus e outra para o Diabo. Ou, como diria o pessoal do bairro, vivemos com um pé lá e outro cá. Mais tarde, percebi que essa ambiguidade é a fina flor da nossa humanidade, um princípio de análise que nos faz mergulhar fundo na alma dos homens.

 

Essa ideia nietzschiana sempre me atraiu justamente por destacar a dimensão contraditória da condição humana. Somos seres desejantes, orientados por um "não sei o quê" indefinido, jogados de cá para lá, impulsionados – ou "pulsionados" – por forças que sequer compreendemos. É da nossa natureza sermos incompletos, meio perdidos. Por isso, não deixa de ser um pouco admirável – e muito invejável – ver aquelas pessoas que parecem ser absolutamente íntegras. Inteiras. Fiadoras ortodoxas de narrativas do mundo que explicam tudo, prontas para apontar a incoerência alheia como se fosse um pecado mortal.
Esses "íntegros" têm para cada erro um diagnóstico: falta de humanidade, ausência de empatia, carência de humildade ou desrespeito à diversidade. Eles carregam consigo uma régua moral universal, capaz de decodificar o caos inocente da vida em dogmas perfeitinhos. Mas, sejamos francos: a vida não cabe nesses moldes.

 

 

Não estou dizendo que ideologias ou posicionamentos são inúteis, longe disso. Elas são parte da nossa tentativa milenar de dar sentido ao caos. Desde que o primeiro ser humano olhou para o céu e viu um escorpião ou um leão entre as estrelas, estamos nisso. Criamos imagens para organizar o que não entendemos, mas, no fundo, sabemos que essas imagens vêm de nós mesmos.

 

 

As constelações, coitadas, continuam lá, alheias ao nosso esforço de torná-las símbolos ou previsões astrológicas. E, ainda assim, resolvemos associá-las aos nossos comportamentos. "Fulano age assim porque é de Libra, ciclano é explosivo porque é de Áries". Por que um universo feito de poeira cósmica e pedras está tão interessado assim em te dar conselhos de vida?


Minha mãe, com sua sabedoria inabalável, uma vez disse: "ele é doido, conversa até com pedra." E ela tem razão. Esperar respostas de objetos inanimados – sejam pedras ou estrelas – é um leve sinal de insanidade. Fica a dica.


Mas essa mania de buscar unidade e integridade não para por aí. Em nossa sociedade, ela ganhou ares moralizantes. Exigimos pureza comportamental, manifestada em corpos guiados por garrafinhas de água, dietas limpas e posições políticas imaculadas. Virou quase uma nova religião. As pessoas constroem narrativas absolutas sobre si mesmas enquanto tomam suco detox e condenam o vizinho por usar açúcar no café. O lema? Porque, claro, a pureza própria é sempre inquestionável.

 

 

A moral do suco verde é simples: só pode errar quem é o outro. A pureza própria, claro, é sempre inquestionável. Uma batalha de narrativas absolutas entre quem cultua a couve e quem idolatra o bacon. É tudo uma grande constelação de padrões imaginários.

 

No centro disso, vivemos nossas cruzadas contemporâneas. O campo de batalha não é mais Jerusalém, mas as redes sociais, e as espadas foram substituídas por textões. Cada lado se vê como o último bastião da moralidade e da salvação do mundo. Discordar, então, é heresia. Ser contraditório? Um crime imperdoável.


Não importa se você defende a justiça social com o fervor de quem recita salmos ou se exalta o livre mercado como se fosse a nova arca de Noé: todos estão prontos para erguer sua bandeira como a única resposta possível para o caos. Afinal, a nova moral exige não só comportamento exemplar, mas uma pureza quase celestial. É a religião do comportamento "limpo", com seus dogmas, apóstolos e, claro, seus mártires.

 

 

Para os moralistas contemporâneos – sejam eles os arautos do veganismo ético ou os soldados do capitalismo selvagem – a contradição é inadmissível. Você tem que escolher um lado, seguir a cartilha, aderir à causa sem titubear. Se você ousar tropeçar na sua humanidade – o que, sejamos honestos, é nosso estado natural – será cancelado ou excomungado da seita moralista de plantão.

 

Mas aqui vai o grande plot twist: o ser humano não é limpo nem puro. Somos uma bagunça ambulante, amamos e odiamos ao mesmo tempo, queremos salvar o mundo enquanto furamos a fila do banco. Somos um "sim" e um "não" coexistindo, um mix de generosidade e egoísmo, coragem e covardia. No fundo, humanos são isso: contraditórios até o osso.

 

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Essa obsessão por integridade moral e comportamental é quase cômica. Não basta mais fazer escolhas conscientes; agora você precisa esfregá-las na cara do mundo. A vida virou um comercial de margarina em que alguns fingem estar perfeitamente alinhados com as estrelas, as garrafinhas e os algoritmos.
Mas a verdade é que a graça da humanidade está nessa dança desengonçada entre o que somos e o que fingimos ser. Tentamos traçar linhas retas em um universo que só conhece curvas. Enquanto isso, as estrelas seguem rindo de nós, alheias ao nosso esforço de transformá-las em horóscopos. E está tudo bem.

 

No fundo, o que seria da vida sem um pouco de caos? Afinal, a corda bamba precisa de desequilíbrio para ter graça.

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