Com U$1 trilhão circulando na economia, segundo uma pesquisa do Goldman Sachs, medicamentos como Ozempic e Wegovy - comumente usados por pessoas com diabetes e agora, popularizados como alternativa para o emagrecimento rápido - se refletem em propostas indecorosas a influenciadores gordos de diferentes partes do mundo. Fico pensando: quem é que ainda não foi cooptado pelas cifras inimagináveis oferecidas pelas farmacêuticas responsáveis, a fim de popularizar os usos, em nome da saúde, da magreza e do bem-estar?
Uma rápida pesquisa em buscadores digitais revela que muito desse valor foi investido em propaganda, feita não apenas por influenciadores que abandonaram o discurso do "body positive" e abraçaram o "vale tudo para ter um corpo padrão - e 'saudável'", mas por grandes empresas de comunicação do mundo todo.
Descrito como "a nova febre", "a nova moda", "a tendência" e até mesmo como um desafio "viral" em aplicativos como o TikTok, o medicamento Ozempic registrou, em 2023, um aumento de 44% nas vendas, com ganhos acumulados de 65% ao longo de 12 meses.
Confesso que é realmente difícil não ceder à tentação de um parcelamento no cartão de crédito para experimentar o milagre do corpo magro em pouco tempo, sem necessidade de uma cirurgia bariátrica e com o selo de verificação de moralidade de "pessoa magra" impresso no novo corpo. A mensagem é sedutora: em pouco tempo, o "corpo dos sonhos" sem a necessidade de processos mais longos, como dietas reguladas e exercícios físicos, que, sabemos por aqui, nem sempre trazem os resultados almejados por uma variante imensa de fatores.
A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) restringiu o uso do Ozempic na União Europeia devido a preocupações com o seu uso indevido para perda de peso.
Obesidade é uma questão de economia?
Uma em cada oito pessoas adultas no mundo são gordas, segundo dados da World Obesity Federation (WOF), divulgados no último dia 4 de março pelo Bank of America (BofA).
Nós sabemos, claro, que o "aumento" de pessoas gordas no mundo soma-se a diversos fatores, como pandemia mundial da Covid-19, trabalhos em home office, acesso dificultado a alimentos orgânicos e saudáveis, excesso de agrotóxicos nas comidas, consumo desenfreado de ultra-processados, falta de tempo para prática de exercícios físicos, jornadas extenuantes de trabalho dentro de um contexto capitalista e colonizador, entre outros fatores como genética, DNA, doenças crônicas pré-existentes, etc.
A máxima do "é só se esforçar que você emagrece", com muito eco na cultura do coach e da meritocracia, é pura falácia. No entanto, quem ganha com uma sociedade cada vez mais gorda? Quem ganha com o consumo desenfreado de ultra-processados? Há uma economia que se movimenta através disso?
De acordo com a mesma pesquisa, na próxima década, mais de metade da população mundial terá excesso de peso ou obesidade e isso custará 3% do PIB global (U$ 4,3 bilhões de dólares - investimento inferior ao lucro da Ozempic que trago no primeiro parágrafo deste texto, vale lembrar), o equivalente aos gastos de saúde com a Covid-19.
Contudo, segundo o Banco de Investimentos, ao mesmo tempo em que "os dados seriam alarmantes", eles são também uma oportunidade de investimentos (claro que sim, por que não seriam?).
Conforme o artigo publicado no site Inteligência Financeira, isso ocorre porque as políticas públicas para "tentar conter os efeitos dessa tendência sobre o orçamento público" devem colocar empresas com iniciativas no setor cada vez mais em evidência.
Uma notícia desta quinta-feira (28), no jornal O Globo, informa que "Ozempic já reduz venda de alimentos em supermercados nos EUA". Imagina o colapso. No artigo, há a informação que um número cada vez maior de CEOs e investidores estão falando sobre como "os populares medicamentos para perda de peso podem mudar a economia e os negócios".
Estaria o medicamento ameaçado? Vamos ver!
Um dos supermercados mais conhecidos nos EUA, o Walmart está observando um impacto na demanda de medicamentos como Ozempic e Wegovy. A empresa analisa mudanças nos padrões de compra, comparando dados de consumidores que utilizam esses medicamentos com aqueles que não o fazem, através de informações anônimas de compras. As vendas de medicamentos GLP-1, incluindo o Ozempic, impulsionaram a receita do varejista, registrando um aumento de 300% nos EUA entre 2020 e 2022, conforme relatado pela Trilliant Health.
No último ano, a Forbes divulgou que a Nestlè já está se antecipando a estas questões. Ela estuda produzir alimentos "friendly" (sim, eles usam essa palavra ao invés de amigáveis, por exemplo) aos usuários de Ozempic. O artigo publicado na revista dá conta de que a multinacional está desenvolvendo produtos para acompanhar os medicamentos destinados à perda de peso e que o medo de que estes possam prejudicar as vendas entra na equação.
Péra, vamos conversar rapidinho: só aqui, essas informações, já seriam suficientes para você se perguntar: só malhar e não comer são suficientes para uma pessoa ser magra? Ou a indústria tem sua parte nisso? A indústria alimentícia e a de fármacos andam de mãos dadas. Qual interesse delas na obesidade e na venda de medicamentos emagrecedores?
Caso não tenha ficado claro, eu explico: farmacêuticas que produzem remédios para emagrecimento devem receber, cada vez mais, isenção de impostos e investimentos públicos para promover seus produtos, a fim de causar um emagrecimento compulsório em uma ponta. Na outra, a aprovação de isenção sobre agrotóxicos, produtos ultra-processados, etc, vai seguir, como forma de permanecer adoecendo - e engordando - uma fatia da população que simplesmente não consegue, por questões financeiras mesmo, ter acesso a alimentação saudável e hábitos de vida que permitam emagrecimento "natural". Logo, a mesma empresa que cria a doença, vende o remédio. E a roda segue girando.
Vamos combinar que não precisa ser muito inteligente para perceber isso. E, na outra ponta, estamos nós, que nos recusamos a caber nesta equação. Que queremos, ora, ser vistos como seres humanos. Que queremos roupas que nos caibam, hospitais que nos comportem, médicos que nos tratem como pessoas, academias que nos recebam. Queremos viver e desfrutar do mundo, exatamente como pessoas magras - e que podem pagar por isso - fazem.
Te parece uma insanidade?
Me parece perverso que o anúncio de novos medicamentos e de como isso pode interferir na economia venha acompanhado de dizeres como "entre os objetivos desse esforço estão evitar uma escalada ainda maior das mortes prematuras por motivos de doenças causadas por excesso de peso". Jura? Eu podia acreditar que era para enriquecimento de alguns grupos. Uma doideira, né?
Vale dizer que as iniciativas governamentais e privadas de controle de peso não passam despercebida dos investidores. De acordo com o mesmo artigo do Inteligência Financeira, o volume de recursos de investidores para fundos com essa temática cresceu a uma taxa composta anual de 26% nos últimos cinco anos. O índice de ações de bem-estar também superou a referência geral do mercado acionário em 13 pontos percentuais nos últimos três anos.
Sendo assim, é ingênuo crer que as farmacêuticas, em concomitância com associações, órgãos governamentais e a mídia, estão preocupados com a saúde ou querendo combater qualquer doença que seja. O que temos aqui é um potencial mercado mergulhado em lucro às custas da patologização dos corpos gordos e do emagrecimento a qualquer custo - qualquer mesmo, já que as apostas são na casa dos trilhões.
Conforme explica a filósofa e doutora em gordofobia Malu Jimenez, isso só acontece porque a obesidade passou a ser considerada doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e "ganhou" uma Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Ela inclusive escreveu o artigo "O combate à obesidade: dispositivos de tortura e castigo em nome da saúde". Pode ser lido aqui.
"Por causa do CID e da obesidade ser lida como doença, o mundo todo tem que criar políticas publicas de 'combate' à doença, são bilhões de dólares investidos todo ano nesse combate, enquanto não temos medidor de pressão nos postinhos para braços gordos", comenta.
No Brasil, entidades como a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), que se colocam bastante presentes nos debates "contra" a obesidade, têm eventos patrocinados ou pela indústria alimentícia, como a Coca-Cola, ou pela indústria de fármacos, como a Nova Nordisk, produtora do remédio Ozempic.
Na prática, "em nome da saúde", a associação recebe uma fatia dos lucros, citados lá no começo do texto, para "promover a obesidade" e o emagrecimento como solução. Que mecanismo!
Com o artigo "Obesidade um prato cheio para o capitalismo", o psicanalista Daniel Hamer Roizman assume que pessoas não podem pagar sozinhas uma conta que é coletiva. "Todos somos perseguidos pela preocupação de engordar numa sociedade que incentiva o consumo livre de todos os produtos alimentícios e depois oferece intervenções".
EU NÃO QUERO OZEMPIC
Que atire o primeiro quilo quem é que nunca recebeu um e-mail de farmacêuticas, de caçadores de influenciadores, de assessores de imprensa, de newsletter com ofertas milagrosas dos medicamentos e, mais, com ofertas vultosas em dinheiro para uma associação do nome à marca. É preciso muita autoestima e resistência para se manter firme e dizer NÃO. Até em aplicativos como Ifood tem o medicamento lá, super exposto, facilmente acessado.
A aceitação social pode falar mais alto. O dinheiro na conta bancária, idem. Ambos podem ser tudo aquilo que alguém que habita um corpo gordo almejou a vida toda.
Em fevereiro, a escritora Virgie Tovar, autora do livro "Meu corpo, minhas medidas" (Primavera Editorial) contou, em um post no Instagram (que foi o começo da inspiração para este meu texto) que ao longo do último ano, recebeu inúmeras ofertas para se medicar com Ozempic gratuitamente, através de empresas de marketing de influenciadores. Ela não é a única. As mensagens já chegaram por aqui também.
Lançado nesta semana, o podcast "Prato Cheio" fez a pergunta no título do episódio: "Quem ganha com a obesidade" e em um episódio de quase 50 minutos, discorre sobre os múltiplos agentes que, sim, faturam sua fatia - irônico, pra dizer a verdade - com a patologização dos corpos gordos, sob o escudo do "combate à obesidade", que nada mais é do que o combate aos corpos gordos, já que o dinheiro que deveria ser investido no cuidado de pessoas gordas nos ambientes de saúde é exclusivamente investido em emagrecimento compulsório, financiando campanhas de entidades e associações que coisificam e desumanizam os corpos gordos em nome da "saúde acima tudo", mas negando acessos quando não há macas, balanças, medidores de pressão arterial, aparelhos de ressonância magnética, entre outros.
Para nomear, na última semana, uma amiga me mandou uma mensagem, me perguntando se eu conhecia, na cidade que vivemos - Poços de Caldas, no Sul de Minas, com pouco menos de 200 mil habitantes - algum local apto para fazer uma ressonância magnética, já que na clínica onde ela foi o equipamento só suporta pessoas até 120 kg. Ela tem um problema na coluna e não consegue detectar, justamente por não ter acessibilidade na hora de fazer um exame.
Ora, se é, como vendem a ideia, mais comum que pessoas gordas tenham problemas nas articulações, coluna, etc, por que, na hora de comprar equipamentos, estes não são feitos para estes corpos? Percebem a armadilha? A perversidade?
Já cansei de escrever sobre isso. Você pode ler aqui, aqui e também aqui.
E SE DER ERRADO?
Um fato curioso é que o emagrecimento rápido, nem sempre, será validado. Nos últimos dias, o termo "Ozempic" está nos trend topics do X (antigo Twitter), virou meme e a maior parte das mensagens refere-se a frases como: "emagreceu muito rápido, aí não vale". É como se, ao optar por uma medicação e não por um processo que envolve esforço e abdicação de alimentos, o corpo que alcança o padrão através da novidade farmacêutica fosse menos merecedor da medalha de reconhecimento mais almejada da atualidade: o corpo padrão.
Em meio aos memes, duas nutricionistas publicaram uma imagem de uma clínica de estética que usa uma imagem da Pequena Sereia (sim, minha gente) para promover a Ozempic. A clínica Nair Urgent Care vende, além do corpo magro, e brilho, controle de diabetes e saúde. Seria um meme, se não fosse tão cruel.
E a busca segue.
Nos últimos dias, o termo "cabeça de Ozempic" viralizou nas redes sociais após aparições das artistas como Maiara, da dupla sertaneja Maiara e Maraísa, que após sofrer duras críticas por conta do próprio corpo, apareceu 30 kg mais magra, fazendo exercícios e, além de ser alvo de deboche, teve a aparência questionada, com dizeres como: O que aconteceu com a cabeça dela?/ Parece um boneco de minicraque/ Quando é que tomar Ozempic fez as pessoas virarem um funko?, entre outras.
Outra que foi alvo de deboche foi Mari Fernandes, com os mesmos dizeres, ao sair de dentro de um elevador, em um vídeo, mostrando um corpo mais magro e a cabeça em tamanho desproporcional.
O princípio ativo do medicamento é a semaglutida, substância que inibe a apetite, por isso a perda de peso rápida. Como consequência a cabeça da pessoa ficaria desproporcional ao restante do corpo.
Além deste suposto efeito colateral do medicamento, outros são citados, como enjoo, tontura e a dor de cabeça. Por conta do efeito causado pela semaglutida, as pessoas também relatam que não conseguem beber água, ou colocar qualquer alimento na boca, sem sentir náuseas. Mau-hálito em razão da falta de alimentos no intestino também foram relatados, bem como constipação, prisão de ventre e queda de cabelo.
Em paralelo, a empresa americana Viking Therapeutics anunciou, nesta semana, um novo comprimido capaz de oferecer emagrecimento significativo em apenas 28 dias. Definido pela revista Piauí como "O Ozempic dos muito ricos", o VK2735 ou Mounjaro. O remédio ainda está na primeira etapa de estudos. De acordo com a farmacêutica, "não foram identificados efeitos adversos graves. As queixas relatadas, alguns casos de náuseas e diarreia, foram consideradas leves ou moderadas".
Já as manchetes sobre o medicamento são "promissoras", para não dizer, novamente, sedutoras. "Novo remédio leva à perda de peso 5 vezes mais rápida que o Ozempic".
Corpos gordos ainda existirão?
Diante disso, fica cada vez mais difícil, para não dizer insuportável, sustentar a contramão: não, não quero perder peso. Não, não estou doente. Sim, eu gosto do meu corpo assim. E, mais do que isso: a acessibilidade.
Temo que num futuro não tão distante eu seja um dos últimos exemplares dos corpos gordos no planeta. Como numa distopia, já que, à minha volta, é possível contar nos dedos as pessoas que ainda se importam com a pauta relativa à gordofobia, sem chamar o body positive de "um surto de 2014" ou sem se render aos medicamentos "milagrosos" ou os que ainda estão mais à moda antiga: encarando a bariátrica e seus efeitos perpétuos pela possibilidade do corpo magro e da humanização da existência.
Com o "acesso" indiscriminado aos medicamentos e a propaganda massiva em torno do corpo magro ou aquilo que podemos chamar, finalmente, de romantização da magreza, debater questões como o direito à existir em um corpo gordo se tornam um contrassenso. Parece que é um delírio. Já falei disso aqui e também aqui.
Com muito investimento financeiro por parte da ciência, aos poucos, existir num corpo gordo se torna uma insanidade, um disparate, uma resistência que, por vezes, é chamada de loucura. Além da bestialização, que também já falamos aqui e neste outro artigo. Devagar, as passarelas voltam a ter apenas modelos hipermagras, a moda dos anos 2000, com calças de cintura baixa e barriga negativa se fazem presentes nos feeds, a moralidade que coloca pessoas magras dentro da academia como um estilo de vida e não uma busca por saúde, idem. É preciso ir malhar e postar o treino, senão, você não foi. É preciso se dizer saudável - e magro, muito além de o ser, de fato.
Enquanto isso: quem se preocupa com a saúde da pessoa gorda? Com a existência dessas pessoas, já que o neoliberalismo impõe que corpos gordos são uma questão individual e de esforço: se esforce mais, malhe mais, trabalhe mais para pagar sua Ozempic ou seu Mounjaro.
Relatos nas redes trazem à tona também o mau hálito, que pode ser associada à falta de alimento no intestino. Além disso, algumas usuárias relatam prisão de ventre ou constipação, outras mencionam a queda de cabelo.
A esta altura, você pode se perguntar: tá? mas e agora?
Agora, a gente precisa assumir que corpos gordos existem para além do desejo e da boa vontade de quem é gordo e que a indústria lucra - e muito - para manter as pessoas gordas, porém, com desejo de emagrecimento, o que decorre em questões como transtornos alimentares, de saúde mental e, não obstante, um adoecimento geral da população pelo simples assombro de engordar.
Sabemos que estamos combatendo pessoas, enquanto deveríamos combater doenças e ao final, dizemos que é pela promoção da saúde.
A minha pergunta é: sabendo disso tudo, vale tudo para ter um corpo magro? Ou é possível existir de outras maneiras?