Tia Nésia era surda. Desde que nasci. Foi a primeira pessoa que não ouvia, mas falava, que eu convivi. Diziam ser um sarampo mal curado, uma doença na infância, nunca souberam explicar direito o que houve, mas, ser surda tirou dela o direito de frequentar a escola. Porém, nada disso a fez menos funcional. Ela sabia que, para chegar à minha casa, tinha que pegar o ônibus que tinha a letra "K", de Kennedy. Poderia dar errado? Poderia. Mas, sempre funcionou. Sabia também qual era o próprio nome. E, o mais importante, sabia me amar como poucas pessoas souberam.
Tia Nésia se foi há alguns anos. Faz uma enorme falta e, foi só já adulta que eu percebi como o corpo surdo pode ser poesia. Demorei muito tempo para entender que corpos surdos são poesia pura. Pessoas surdas falam com o corpo todo. Os olhos são mais expressivos, bem como as mãos - e eu ainda nem estou falando da Língua Brasileira de Sinais (Libras), mas, do movimento que é encadeado com as frases e com o que é dito com a barriga, com as orelhas, com as pernas, com o quadril. Se isso não for poesia, o que é, então?
E eu demorei até meus 30 e tantos anos para sacar isso. Tia Nésia já tinha partido e eu nem pude dizer a ela o quanto eu achava bonito aquele movimento das nossas conversas, que aprendi desde que aprendi a falar: tinha que ser olhando nos olhos, para que ela pudesse ler o movimento da minha boca. Tinha que ser com as mãos. Eu tinha que gastar também, meu corpo, para dizer a ela. Isso nunca impediu que o carinho fosse carinho. Que os abraços fossem deliciosos. Que eu morasse em muito amor naquele corpo dela. Sinto falta até hoje. Queria que ela pudesse ouvir - ou ler, para saber. Mas, de algum jeito, penso que ela sabia.
A poesia viva: slam do corpo
Foi só em 2018, oito anos depois que ela tinha partido, quando fiz a curadoria e mediação de um clube literário no Sesc Pompeia, em São Paulo, em que havia tradução em LIBRAS, ao vivo, foi que entendi a urgência da gente se comunicar com pessoas surdas, com todo mundo, na verdade. Foi quando um jovem veio me agradecer pelo ciclo, pelas conversas e, sobretudo, pela acessibilidade.
Veja bem. Logo eu, que sempre digo dos corpos dissidentes. Que tô sempre na trincheira pelo acesso das pessoas gordas, LGBTQIAPN+, de quem está às margens. Logo eu. Eu não havia me atentato para isso. Tão feminista, tão inclusiva. Tão briguenta quando percebia que algo não estava ao alcance de todes. Poxa, logo eu? Sim! Eu mesma. Eu, que nunca tinha ouvido as pessoas surdas. Que nunca tinha enxergado que elas também querem - e precisam participar. Que nunca tinha entendido que editais exigirem acessibilidade não é balela. Que ter alguém ali, em pé, traduzindo algo para outras língua - que seja a dos sinais - me permitia uma comunicação com pessoas surdas. Mas que tem tanto a dizer.
E esse jovem me mudou para sempre. Nunca mais consegui não pensar nessa acessibilidade. Embora eu faça um podcast e tente me convencer que de que ele é acessível para pessoas cegas ou com baixa visão, mas, ainda, inacessível para pessoas surdas - exceto quando conseguimos gravar ao vivo, com plateia, e chamar tradutores de LIBRAS.
Mas, tô aqui dizendo isso tudo para dizer que, foi também nessa época que conheci o Slam do Corpo.
Slam, para quem não sabe, é uma batalha de poesia, com direito a júri escolhido na hora, performance e onde é proibido o uso de qualquer adereço. É só o corpo e a voz. Mas e as pessoas surdas? Aí é que está. Quem disse que elas não falam?
Foi nesse ambiente que aprendi que é totalmente errado nos referirmos às pessoas surdas como “surdo-mudo”. Todo mundo tem voz. Todo mundo fala. As palavras encadeadas na gramática sonora que conhecemos não é o único jeito. O corpo também diz. E, no jogo de cena de um slam, é ele quem comanda e conta os poemas do nosso tempo.
Esse mesmo slam completou 10 anos agora, em 2024. Diferente das batalhas de poesia tradicionais, no Slam do Corpo, duas pessoas são responsáveis pela poesia, feita ao mesmo tempo em português e em Libras. É o que os próprios integrantes chamam de “beijo de língua”, um termo usado para descrever o encontro de surdes e ouvintes.
Veja bem: uma década fazendo poesia através do corpo. Num país que as estatísticas mostram que 53% da população não lê nada, segundo a pesquisa mais recente do Retratos da Leitura no Brasil, termos um coletivo que faz poesia sem dizer nenhuma palavra é o que podemos chamar literatura viva, ou, pensando poeticamente: uma revolução silenciosa e ensurdecedora ao mesmo tempo.
Imagine um duelo de palavras onde as rimas não dependem da voz. Ali, os gestos são versos, os olhares, rimas, e os corpos inteiros declamam poesias que não precisam de tradução para tocar. São performances que ultrapassam barreiras, desafiando a lógica de que só ouvimos com os ouvidos.
Foi num desses encontros que eu percebi o quanto nos falta silêncio para ouvir. Não o silêncio da ausência, mas o que nos conecta ao outro. Um jovem poeta surdo, com movimentos precisos e intensos, transformava seu corpo numa tempestade, e o público, atento, navegava em suas ondas. Ao lado dele, um intérprete traduzia em palavras, mas era impossível desviar os olhos da dança que ele fazia no ar.
Dez anos de Slam do Corpo são mais do que um marco; são uma ponte. O projeto começou tímido, como uma ideia de juntar surdos e ouvintes através da poesia, e se transformou numa tribo pulsante, onde a Libras é a língua oficial e a empatia, o passaporte de entrada. Hoje integram o coletivo Leo Castilho e Erika Motta. Outros poetas e produtores ajudam no trabalho de difundir a poesia neste formato, que é pioneiro não apenas no Brasil, mais no mundo.
O palco do Slam não é só espaço de competição, mas de encontro. Nele, a surdez não é ausência; é potência. As mãos falam, os corpos gritam, e o silêncio vibra. É um lembrete de que há outras formas de comunicação além da palavra falada – e de que podemos aprender a escutar com mais do que os ouvidos.
Enquanto assistia à final, percebi que o Slam do Corpo não era só sobre poesia. Era sobre existir, ocupar espaço, ser visto. E, principalmente, ser entendido. Com isso que conto aqui, aprendi que a comunicação não é um ato de fala, mas de encontro. Não importa se você chega com a voz, com as mãos ou com o coração – o que importa é chegar.
E talvez, na próxima vez que tentarmos nos comunicar, possamos fazer como no Slam do Corpo: calar mais a boca, abrir mais os olhos e permitir que o silêncio também tenha seu lugar no palco.