Nossa morte prematura
A intelectual norte-americana Ruth Gilmore aponta que o preconceito é a exposição de algumas populações a uma morte prematura
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Edouard Louis, no livro “Quem matou meu pai” (Todavia) cita Ruth Gilmore, intelectual americana entre as mais proeminentes da atualidade, que dedica seu pensamento e militância ao entendimento e recusa do capitalismo racial propondo caminhos cotidianos rumo a futuros libertários. É também investigadora e abolicionista penal. Entende o racismo como a exposição de algumas populações a uma morte prematura.
Louis estende a definição para todos os tipos de preconceito. Machismo, homofobia, transfobia, dominação de classe, antissemitismo e aos fenômenos de opressão social e política. Muitos concordariam com essas ideias racionalmente justas e legítimas, no entanto, mantêm em seu íntimo o desprezo pelo diferente.
A fonte das disputas de amor e ódio, da intolerância, reside no fato de que Narciso acha feio o que não é espelho. Narciso morreu capturado à própria imagem, apaixonou-se. Nunca conseguiu se separar de seu reflexo, embora jamais tocasse na imagem sem que ela se desfizesse em ondas na água.
As primeiras relações das crianças com o outro, que não a mãe e os muito próximos, são de estranhamento. O eu não aceita o outro sem agressividade. Essa reação se perpetua em nós. Temos dois tipos de investimento da libido, a energia de ligação, uma dirigida ao eu e outra aos objetos externos.
Crescemos e a educação nos ensina o que é bom e o que não é. O certo e o errado, o feio e o bonito. A entrada na linguagem nos molda à cultura. No corpo natural, sem marcas, a língua afetiva materna, que chamamos lalangue, faz marcas.
Esse outro, mãe ou cuidador, determina nosso lugar, quem devemos ser. Se nascemos alienados no desejo do outro, precisamos ser tudo o que ele espera. Assim crescemos e, apesar disso, permanecemos pequenos, a alma não se expande abraçando o mundo como seu. Engessados em nosso cantinho diminuto, apontamos nos outros a causa de nossos próprios medos. Medos guardados no esquecido, ódios acumulados pelo tempo, que sairão pelos poros dirigidos à realidade.
Apesar de nascermos biologicamente homens e mulheres, não há harmonia entre o desejo e a pulsão que nos move em direção aos objetos. Nem todos que são homossexuais desejaram ser. Não é uma escolha feita racionalmente, é um desejo que se impõe acima do que se queria. Nem todos querem ou amam o que desejam.
Segundo Freud, as crianças são polimorfas, ou seja, gozam indiscriminadamente, pois não conhecem a diferença entre gêneros. Mais tarde, farão sua escolha, que pode ser hetero ou homo. No primeiro caso, a quota homo do prazer será esquecida, mas segue ativa na fantasia inconsciente.
Se não fosse assim, por que tanto ódio? O ódio não seria por assistir um outro realizar aquilo de que sou privado? O homem não mata a mulher porque ela lhe disse não e isso é desvirilizá-lo? Daí podemos entender o que disse Gilmore: o preconceito é, de fato, a exposição de algumas populações a uma morte prematura.
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