Recomeço: matéria sonora
Sejamos leves e abertos para fazer acontecer o futuro consoante ao que escrevemos, dizemos, cantamos
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Desejo outras palavras ainda que compostas das mesmas letras do alfabeto. Do mesmo barro se multiplicam formas. Letras que dançam, brincam entre si, transmutam, unindo e desunindo, compondo sílabas, palavras, frases e orações. Arranjos inéditos apresentam sentidos, sons e harmonias. Expressam a boa morada do desejo.
Sejamos leves e abertos para fazer acontecer o futuro consoante ao que escrevemos, dizemos, cantamos. A escrita é viva e não marca apenas o papel, que tudo aceita, marca o corpo de quem escreve, é sentido grafado no coração.
Na gramática temos sujeitos diretos, indiretos elípticos, implícitos subentendidos determinados e indeterminados, ocultos ou inexistentes. Na vida, dos vazios a língua própria de cada um é feita da letra.
O movimento linguageiro promove laços, trocas, transmissões. Fazemos com as palavras tudo aquilo a que elas se prestam como nossa ferramenta maior. Elas nos forjam, desde que nascidos numa banheira de letrinhas, gradativamente se organiza com a maturidade. Podemos ver nos bebês a ânsia por articular sons para chamar, para que os vejamos, os amemos.
Quando falamos com eles, acendemos seu interesse por viver, são afetados pelos sons que ecoam em seus corpos convidando a adentrar na cultura. O som é matéria, é afeto que afeta. Sem esse sujeito não anônimo que nos laça em seu desejo, palavras e sons não poderiam tonalizar o mundo e o marasmo nos consumiria. Quem nos escuta nos salva.
A vida avança e as palavras se multiplicam para unir e o contrário. Palavras lançadas nunca voltam se tornando domínio de ninguém, deixam marcas e efeitos. Efeitos esses que trouxeram a descoberta de Freud. Ele escutou palavras das mulheres e os efeitos da escuta mostraram o caminho de uma possível cura das mazelas a que estavam submetidos seus corpos sem a escuta da voz, da dor, da opressão.
As poderosas palavras, letras, escritas, faladas, podem destruir vidas como uma faca amolada, mas curam e, nesse caso, são milagres. De fazer vir sentido onde não se ouvia. Por trazer saber preso e insabido à tona. Por ser lógica oculta em cada um, estranho, infamiliar, que mora dentro e vem à luz, sendo parida. E já se trata então de outra cena com foco inconsciente.
E desse processo vem se delinear o precioso sujeito, o maior valor de si. Outras palavras, outra moeda, outro mundo que se descortina e desbrava na insistência de quem se quer liberto das repetições de prejuízo certo e calculado com esmero de pagador de pecado, culpado por desejos de escolhas feitas sem ciência e brotam antissociais, se impondo na contramão moralizante.
Vem dos excessos incorrigidos ou incorrigíveis. Alguns sem poda, crescentes feito mato, selvagens, ramos e braços brotam onde não devem. É o olhar cortante de jardineiro, ali certeiro, que muda o destino da alma. Outros, da natureza mesmo de certos desejos, os incorrigíveis, que não se vergam a mandamentos. Discernimento que nos falta. Essa escuta é fundamental.
Haroldo de Campos propõe em “Galáxias” (Editora 34, 2004) ler em voz alta em zonas obscuras por transparentarem à leitura. Deixo um pequeno recorte: “...O povo é inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tateando a travessia azeitava o eixo do sol pois não tinha serventia metáfora pura ou quase o povo é o melhor artífice no seu martelo galopado no crivo do impossível no vivo do inviável...”.
Enfim, viver é perigoso, mas corpo sem sujeito é perda pura. Ser sujeito é art