Recentemente foi publicado um excelente artigo no portal “Futuro da Saúde", abordando o mau uso do termo “erro médico” e a necessidade da revisão do conceito. Tive a oportunidade contribuir com o conteúdo do artigo, que explica a iniciativa do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) de abolir o uso genérico e abrangente da nomenclatura “erro médico” nas ações de indenização em face de médicos. A ideia é que o termo seja substituído por “evento adverso em saúde.”
A iniciativa é louvável, precisamos reconhecer. Usar a nomenclatura “erro médico” em ações que objetivam avaliar a ocorrência do erro é algo que beira a estupidez. Principalmente considerando que a maioria dos processos termina comprovando exatamente o contrário do que a nomenclatura sugere.
Mas ainda que a mudança ocorra, dificilmente será suficiente para resolver a crise atual, que vai muito além do mau uso das palavras na classificação dos processos. Embora o termo erro médico seja usado em todo o mundo, em poucos países a realidade é grave como no Brasil. Na verdade, ela retrata um grande problema social: a “Cultura do Erro Médico", que é diariamente praticada por pacientes, autoridades, imprensa e pela própria sociedade, sobretudo, nas redes sociais.
A péssima cultura tem início através dos próprios pacientes. Vivemos em um país no qual a malandragem é motivo de orgulho, quase um patrimônio histórico nacional. Portanto, acusar o médico de erro em qualquer situação desfavorável se tornou algo comum, embora seja incontroverso que a maioria das insatisfações não decorrem de resultados ruins, mas de expectativas criadas pelos pacientes. Mesmo nos casos em que, de fato, há um mau resultado, na maioria dos casos ele não decorre de culpa do médico.
A medicina não é uma ciência exata, portanto, o médico não possui dever de resultado (pelo menos em regra). Além disso, não são os raros casos em que os próprios pacientes prejudicam o alcance do resultado ao ignorar os cuidados e as orientações médicas. Exatamente por estes motivos, a grande maioria das ações ajuizadas por pacientes contra médicos são julgadas improcedentes.
Será que a mera mudança de nomenclatura fará a diferença, quando cada vez mais pacientes aderem à “Cultura do Erro Médico”? É difícil acreditar, sobretudo quando a malfadada cultura possui grande adesão das autoridades policiais e investigativas.
São cada vez mais comuns os casos em que delegados de polícia (e outras autoridades do estado) usam o sofrimento alheio para ganhar seus 15 minutos de fama. O papel das autoridades é investigar sigilosamente os casos e submeter suas apurações à Justiça, protegendo os direitos de todos os envolvidos (inclusive os acusados). Após o inquérito, pode ocorrer uma denúncia, que pode ser sucedida de um processo, que pode gerar uma condenação. Só então, faria algum sentido dar publicidade ao caso.
Mas, na prática, o que vemos é cada vez mais delegados e promotores concedendo entrevistas absurdas, dando publicidade indevida aos casos e condenando sumariamente as vítimas (sim, VÍTIMAS) dos inquéritos, destilando opiniões vazias de técnica, mas que transbordam vaidade. Causam uma devassa nas vidas dos investigados, antes mesmo de serem acusados, processados ou condenados.
Qual efeito podemos esperar da mudança proposta pelo CBC, se antes mesmo da investigação, da denúncia, e do devido processo legal com direito ao contraditório e ampla defesa, os médicos já são condenados, ao vivo em horário nobre, pelas autoridades do estado que deveriam proteger seus direitos?
Isso nos remete à grande influência causada pela imprensa, a autoridade mais poderosa da modernidade. Cruéis e sensacionalistas, os veículos de imprensa não destroem a imagem e a reputação dos médicos por conta de um mero erro de nomenclatura. Sua atuação é totalmente consciente, com um objetivo muito bem definido: ganhar engajamento do público, e lucrar com os anúncios. Seu objetivo é vender, e não informar. E infelizmente, a “Cultura do Erro Médico" é campeã de vendas.
Mas se a imprensa veicula cada vez mais lixo, é porque a nossa sociedade o consome de forma voraz. Umberto Eco já dizia: a internet deu voz a uma legião de imbecis. Frustrados com as próprias vidas, um infinito de internautas navega diariamente em busca da próxima execução sumária. E ao menor sinal de um acusado moribundo, iniciam o apedrejamento, massacrando com requintes de crueldade a vítima do dia nas redes sociais, a praça pública da era moderna.
A verdade, senhores, é que alcançamos o fundo do poço. A “Cultura do Erro Médico" massacra a saúde mental dos médicos, e a maioria dos atores que a promovem não enfrentam qualquer consequência (salvo poucos casos de médicos bem assessorados, que são minoria). Com isso, a “Cultura do Erro Médico" alcançou o nível seguinte: a violência física contra os profissionais. Hoje, 40% de todos os médicos (e 71% dos profissionais da saúde) já foram vítimas de agressões físicas no trabalho pelos motivos mais variados e absurdos.
Recentemente, falamos nesta coluna sobre uma médica presa por respeitar o sigilo profissional, e outro demitido por dispensar atendimento humanizado ao paciente. A situação dos profissionais beira o ridículo, pois qualquer conduta, por mais assertiva que seja, pode gerar as reações mais inesperadas de toda a cadeia de adeptos à “Cultura do Erro Médico".
O trágico suicídio do cirurgião pediátrico piauiense, ocorrido em julho deste ano, após um injusto massacre de sua reputação (pelas autoridades, imprensa e sociedade) pode parecer um caso isolado, mas, na verdade, quem atua com a assessoria para médicos como eu, sabe que todos os dias centenas de médicos se aproximam deste extremo. Segundo pesquisa da American Psychiatric Association, os médicos têm a mais alta taxa de suicídio dentre todas as profissões. Outro estudo da Universidade da Califórnia indica que 1 a cada 15 médicos sofre com pensamentos suicidas.
O quadro é preocupante: quem cuida da nossa saúde, está doente. Precisamos dar fim à “Cultura do Erro Médico", e o caminho passa pela conscientização dos pacientes, pela repressão aos excessos das autoridades e imprensa, pela educação da sociedade, mas sobretudo pela rigorosa punição dos verdadeiros criminosos.
Parabenizo o Colégio Brasileiro de Cirurgiões pela importante iniciativa, que merece o reconhecimento de todos. Em meio ao caos atual, toda boa iniciativa deve ser valorizada. Ofereço meu incondicional apoio, e torço para que a iniciativa encontre o mesmo suporte nas entidades da classe médica. Pois embora louvável, se isolada, esta medida jamais fará frente à “Cultura do Erro Médico".
Renato Assis é advogado há 17 anos, especialista em Direito Médico e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO de seu escritório, especializado em Defesa Médica, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.
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