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Renato Assis
Renato Assis
Renato Assis é advogado especialista em Direito Médico, professor e empresário. Seu escritório de advocacia atua com Defesa Médica há 18 anos, em todo o território nacional.
DIREITO & MEDICINA

Sangue e religião

O STF reconheceu a autonomia dos pacientes em recusar transfusão de sangue por convicções religiosas, mas impôs condições para resguardar a segurança jurídica.

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Em novembro, participei de um debate na Faculdade de Medicina Atenas, em Sete Lagoas, sobre o julgamento recente do Supremo Tribunal Federal que reconheceu o direito de recusa a transfusões de hemoderivados por convicção religiosa. O tribunal decidiu em favor da autonomia da vontade e das liberdades individuais dos pacientes no julgamento dos Recursos Extraordinários RE 979.742 e RE 1.212.272, ambos com repercussão geral. As teses fixadas vinculam todos os tribunais do país.

 

 

Essa decisão beneficia particularmente as Testemunhas de Jeová, uma comunidade cristã com 8,8 milhões de fiéis em mais de 230 países, que interpretam passagens da Bíblia como uma proibição ao uso de sangue. Contudo, mesmo com a decisão, perduram questões complexas para médicos e pacientes quando há risco de morte, e a transfusão é a única ou principal opção disponível. Conflitos como esses têm sido frequentemente judicializados, e a manifestação do STF busca pacificar o tema — embora ainda restem muitas incertezas e polêmicas.

 

O Caso do RE 1.212.272

 

Esse julgamento tratou de uma paciente que teve sua cirurgia negada pelo hospital após recusar-se a assinar um termo de consentimento para transfusões de sangue, caso necessário. Embora existisse a possibilidade de realizar o procedimento sem transfusão, não havia garantia de que ela não seria indispensável. A paciente baseou seu pedido no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito à liberdade religiosa.

 

A questão central era: é legítima a recusa à transfusão de sangue por motivo de convicção religiosa, mesmo diante do risco de morte? Segundo o STF, a resposta é afirmativa.

 

Sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o tribunal fixou teses que reafirmam o direito de recusa. Segundo o STF, “é permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde, por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde, por razões religiosas, é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade”. Além disso, “é possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente".

 

A decisão reconheceu a autonomia dos pacientes com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, direito à liberdade religiosa, cidadania e isonomia, todos previstos na Constituição Federal. Contudo, impôs claras condicionantes: o paciente deve ser maior de idade e civilmente capaz, e a decisão precisa ser inequívoca, livre, informada e esclarecida. A decisão prevê ainda a validade das diretivas antecipadas de vontade, representado pelo documento que muitas Testemunhas de Jeová carregam consigo.

 

 

O Caso do RE 97.9742

 

Esse julgamento tratou de um paciente que necessitava de uma cirurgia em outro estado, pois sua região não oferecia o procedimento sem transfusão de sangue (método PBM). A União havia negado cobertura médico-assistencial, alegando violação aos princípios da isonomia e razoabilidade.

 

O principal dilema do caso era: a liberdade religiosa pode justificar a extensão das liberdades individuais? Para o STF, a resposta também foi positiva.

 

O julgamento, ocorrido sob a relatoria do Ministro Barroso, fixou as seguintes teses: “Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa”. No mesmo sentido: “Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde - SUS, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio".

 

A decisão reconheceu o direito do paciente, baseando-se justamente nos princípios da isonomia e razoabilidade e no direito à liberdade religiosa, impondo os mesmos requisitos do julgamento anterior. Além disso, o tratamento alternativo deve estar disponível no SUS, e seu custeio não pode representar ônus desproporcional.

 

Avanços e Dilemas

 

A associação Testemunhas de Jeová do Brasil celebrou as decisões do STF, que alinham o Brasil a jurisprudências internacionais, como as dos EUA, Canadá, Itália e Colômbia, além da Corte Europeia de Direitos Humanos. Essas decisões reforçam o direito à autodeterminação e à autonomia dos pacientes.

 

O debate ocorrido em novembro contou com membros da COLIH, comissão internacional que promove o diálogo entre médicos e pacientes Testemunhas de Jeová. Eles destacaram o método PBM (Patient Blood Management), que reúne estratégias para reduzir ou eliminar a necessidade de transfusões. A própria OMS recomenda o uso de tratamentos alternativos, destacando os riscos de contaminação associados às transfusões.

 

 

Com a autonomia dos pacientes reconhecida, os médicos terão maior segurança jurídica para respeitar suas decisões, sem receio de responder por omissão de socorro ou negligência médica. Mas apesar dos avanços, os profissionais ainda enfrentam dilemas éticos e legais, sendo necessário equilibrar a segurança jurídica e os princípios éticos que norteiam sua prática.

 

Cenários Práticos e Complexidades

 

Paciente consciente, com diretiva antecipada de vontade: mesmo com documento válido proibindo a transfusão, o médico deve esclarecer o paciente sobre os riscos iminentes, permitindo a chance de reconsideração diante da possibilidade (ou certeza) de morte.

 

Paciente inconsciente, testemunha de Jeová, sem diretiva antecipada de vontade: a mera ciência da religião do paciente não substitui um consentimento livre, informado e expresso renunciando à transfusão. Neste caso, a decisão médica deve prevalecer.

 

Paciente inconsciente, diretiva de vontade manifestada por terceiros: a decisão é personalíssima e cabe exclusivamente ao paciente. O médico deve realizar a transfusão, se necessária, mesmo contra a vontade de cônjuges ou acompanhantes.

 

Paciente menor de idade, diretiva de vontade manifestada pelos pais: o critério médico prevalece sobre a recusa dos pais em casos de risco à vida. Se necessário, o médico deve acionar a segurança do hospital ou a polícia, e os pais podem responder criminalmente caso coloquem em risco a vida do filho por questões religiosas particulares (a decisão é personalíssima, e o menor é incapaz).

 

Paciente consciente, mas confuso ou em choque: o médico precisa avaliar as condições do paciente, e caso sua decisão não possa ser considerada inequívoca, a decisão médica deve prevalecer, sempre com detalhada documentação no prontuário médico.

 

Poderíamos citar inúmeras outras complexidades, pois apesar das teses do STF, os casos permanecem complexos e exigem a cautela. Documentar detalhadamente cada etapa no prontuário médico é essencial, se possível indicando testemunhas. Buscar suporte jurídico em casos de dúvidas é essencial, pois em caso de óbito o médico pode ser denunciado por familiares que discordem da decisão, respondendo civil, penal e eticamente. Portanto, é indispensável que de situações análogas seja conduzidas com o apoio de um advogado especialista no momento dos fatos, garantindo as decisões mais assertivas no ponto de vista jurídico, e a formalização adequada de todos os fatos.

 

Reflexões Finais

 

As teses do STF ofereçam segurança jurídica, mas não eliminam os dilemas éticos. Os médicos seguirão enfrentando situações complexas que desafiam seus princípios pessoais e profissionais. Renunciar à vida pode ser um direito do paciente, mas aceitar esta decisão vai contra a natureza do médico, cuja vocação é preservar a vida em primeiro lugar.

 

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PS: O debate realizado em novembro foi promovido pelo médico Dr. João Paulo Lemos, assíduo leitor desta coluna, e contou também com a participação do Dr. Alessandro Borges (juiz do TJMG), Dr. Cléber Valadares (Unimed Sete Lagoas), Dr. Hermann Alexandre (conselheiro do CRM-MG), Dr. Cláudio de Melo Baptista (AMMG Sete Lagoas), Dr. Rafael Menezes (COLIH), Dr. Alexandre Almeida (OAB/MG Sete Lagoas) e um público de cerca de 200 pessoas. Parabéns pela iniciativa, Dr. João Paulo!

 

Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.

Site: www.renatoassis.com.br

Instagram: renatoassis.advogado

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