Comer, rezar, beber
A história de 'A Festa de Babette' é uma metáfora da possibilidade da união dos prazeres espirituais e materiais
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO
Duas irmãs vivem com seu pai, um pastor luterano, numa remota e gélida aldeia na Dinamarca. A vida é austera, a comida regrada e o trabalho diário se divide entre orações e a ajuda da comunidade local. Mas porque nessas condições elas tinham uma empregada francesa?
Este é o mote do filme “A Festa de Babette”, talvez a melhor narrativa já feita no cinema sobre a gastronomia. O filme, baseado num conto de Karen Blixen, ganhou diversos prêmios, entre eles o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1988.
A empregada francesa era uma refugiada de guerra que, durante 16 anos, serve às duas senhoras e melhora a alimentação de todos na aldeia com os parcos recursos locais. Negocia com o peixeiro, usa ervas do campo, faz o melhor molho possível. Coisa de cozinheiro.
Até que um dia chega um bilhete premiado de loteria, que ela renovava anualmente. As duas irmãs imaginaram que a empregada iria embora, agradecem os anos em que ela trabalhou de graça. Mas Babette responde que gostaria de preparar um jantar para elas e seus convidados.
As duas irmãs concordam, mas depois se arrependem, ficam temerosas e têm pesadelos quando Babette volta de viagem trazendo ingredientes como codornas, uma tartaruga, caixas de vinho, toalha e taças de cristal. O pesadelo era com o sabbat das bruxas, como se o diabo estivesse prestes a corrompê-las pelos prazeres mundanos e desviar a atenção da contemplação espiritual austera.
No dia do jantar, todos os convidados prometem não sentir o gosto de nada. Até que começa o festim, numa mesa espetacularmente montada, com castiçais, toalha, guardanapos e louça refinada.
O jantar é uma aula de gastronomia e harmonização, sendo servidos um Amontilado de entrada, depois uma Veuve Cliquot Gran Dame, seguida pelo Clos de Vougeot e pelo Sauternes. Babette começa pelo Blinis Demidoff, servido com autêntico caviar, uma sopa de tartaruga e codornas recheadas com trufas em um ninho de massa folhada com foie gras e molho de conhaque e finaliza com o Baba au Rhum acompanhado de frutas.
Na mesa estava um único convidado que pertencia aos salões da corte, um general que, no passado, ainda como um soldado, ofereceu casamento a uma das irmãs, que preferiu seguir na aldeia com seus trabalhos pela comunidade. O general funciona como o tradutor daquela experiência aos demais, explica que aquele jantar lembrava uma célebre chef mulher do Café Anglais, o restaurante mais famoso em Paris na época. A chef era de fato Babette.
Os convidados no jantar intercalam orações com os sabores dos pratos e vão se rendendo aos poucos, conversando sobre desavenças passadas e se reconciliando. No final, todos encantados agradecem a Babette, que diz às duas senhoras que não iria embora porque havia gasto todo o prêmio da loteria com aquele jantar. As irmãs, espantadas, ouvem a justificativa de que ela havia gasto o dinheiro consigo mesma. A frase é bela: “Dê ao artista a possibilidade de exercer a sua arte”.
Algumas pessoas acham uma loucura gastar dinheiro com comida e vinho. Uma experiência gastronômica satisfatória é transitória, efêmera, não é um bem durável, não é como comprar uma calça jeans ou um móvel. Por isso, gastar com comida e oferecer o alimento é um ato de generosidade. No final, é o que sai mais caro, temos que comer todos os dias.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia
A história de “A Festa de Babette” é uma metáfora da possibilidade da união dos prazeres espirituais e materiais. Não são antagônicos, são complementares. A experiência material, sensual e sensorial de um bom jantar eleva a alma e o espírito.
Feliz Ano-novo!