Entre a faixa nordeste do continente africano e a Península Arábica, encontra-se uma das mais estratégicas áreas do mundo: o Mar Vermelho. Essa estreita língua de oceano corresponde à área de separação entre as placas tectônicas africana e arábica, de idade geológica relativamente recente. Mas o que a coloca em evidência no mundo é o fato de ser uma rota marítima de extrema relevância no comércio global.
Por essas águas passam os navios de carga e energia fóssil, responsáveis pelo transporte de ¼ das mercadorias comercializadas no planeta. Um dos pontos mais importantes nesse pequeno cinturão de água é o Estreito Bab-El-Mandeb (o portal das lágrimas, em árabe), que liga o Mar Vermelho ao Oceano Índico, via Golfo de Áden. A ligação ao mar Mediterrâneo ocorre ao norte, através do Canal de Suez, onde existe um intenso fluxo de embarcações.
Esse território é temido há muito tempo devido aos frequentes sequestros de navios cargueiros que trafegam ao longo dessa região do “Chifre da África”, atacados pelos grupos conhecidos como os “piratas somalis”. O cenário de temor se agravou com a resposta agressiva do grupo Houthi (Iêmen), considerado rebelde pelo Ocidente, às atrocidades cometidas pelo exército de Israel contra os civis palestinos em Gaza.
Atualmente, essa é a rota oceânica mais perigosa do mundo devido à ação desses grupos iemenitas, de origem muçulmana xiita, os quais controlam a parte do território ocidental do Iêmen, incluindo a capital, Sana, que se estende por esse limite costeiro. Os Houthis declararam total animosidade aos israelenses, desde a eclosão da guerra contra os palestinos de Gaza, no dia 7 de outubro, após os ataques do Hamas a Israel, o que ceifou a vida de 1160 pessoas e a captura de 250 reféns judeus.
Desde o final de 2023, os Houthis atacam as embarcações que trafegam pela região com mercadorias destinadas a Israel ou que envolvam capital de investidores de origem judaica. Uma série de ataques com drones e mísseis balísticos contra os navios de carga ocorreu nos últimos meses.
Como resultado dessas investidas, no último sábado, dia 2 de março, o navio (que transportava carga 22 toneladas de fertilizantes da Arábia Saudita para a Bulgária) e atacado no dia 18 de fevereiro pelos Houthis, afundou no Mar Vermelho. É a primeira embarcação a ser totalmente destruída como parte das ações iniciadas após a campanha contra a guerra de Israel na Faixa de Gaza.
O naufrágio do Rubymar expõe a fragilidade dessa via de navegação, crucial para o comércio global. Numerosas embarcações já haviam se desviado dessa rota. A confirmação desse naufrágio pode acelerar os desvios, ampliar a demora no abastecimento de suprimentos (há um aumento de 43 dias para seguir caminho pela costa da África do Sul) e elevação estratosférica das taxas de seguros, destinadas aos navios que circulam por essa hidrovia.
A consequência imediata da mudança de fluxo dos navios será o aumento preços dos produtos, agravando a inflação, cujos valores serão transferidos para os consumidores, envolvendo desde combustíveis ao cafezinho do dia a dia, tornando o custo de vida mais difícil para parcela expressiva da população mundial.
Novos cenários desastrosos são possíveis. Esse navio, ao afundar, comprometerá ainda mais o ecossistema. O lançamento de toneladas de fertilizantes e de óleo combustível (há mais de 29 km de mancha de petróleo pelo local) alterarão a biota, há muito fragilizada pelo intenso corredor de navios que atravessam, diariamente, o Mar Vermelho. A limpeza dessas águas será muito complicada pela presença dos Houthis e a constante ameaça de ataques de mísseis, que afastarão possíveis colaboradores
Outro grave problema decorrente do afundamento do Rubymar (navio britânico com bandeira de Belize) que estava à deriva, em direção ao norte, desde o ataque com o mísseis balísticos, é que sua âncora pode ter danificado quatro cabos de fibra ótica, que garantem parte da conexão de internet a vários países europeus, africanos e asiáticos. Apesar de não ter interrompido totalmente a conectividade, foi registrada lentidão da rede em vários locais.
As especulações sobre a origem desses danos recaem também sobre o grupo rebelde, pois os Houthis ameaçaram fazê-los, em dezembro de 2023. Opositores dessa ideia afirmam que o grupo não tem tecnologia para tanto, uma vez que as operações submarinas necessárias para tais atos são consideradas de domínio exclusivo de nações como a Rússia e a China.
Entretanto, defensores afirmam que uma embarcação de maior porte, com a âncora acionada, sendo deslocada, aleatoriamente, por dias seguidos poderia causar tal efeito, sem o uso de meios tecnológicos de ponta.
Os primeiros relatos de danos aos cabos submarinos na Costa do Iêmen surgiram na manhã da última segunda-feira. Alguns meios de comunicação israelenses divulgaram que quatro cabos das empresas EIG, AAE, SEACOM e TGN-EA, haviam sofrido graves avarias. Algumas dessas empresas informaram que redirecionaram o tráfego para outros equipamentos equivalentes, que não foram deteriorados, diminuindo os possíveis estragos em curto e médio prazos.
A sensibilidade geopolítica da região e as tensões permanentes criam um ambiente particularmente desafiador para as operações de manutenção e reparo desses cabos, afetados nos últimos dias. Os obstáculos serão múltiplos, envolvendo aspectos financeiros, logística e segurança.
Não será fácil encontrar rapidamente empresas responsáveis por esses trabalhos. Em condições mais normais, pode demorar vários dias. Hoje, a situação é mais crítica, pois exige também empresas e operários com coragem suficiente para enfrentar um local de elevado risco de ataques, nos 32 km de extensão do Estreito Bab-El-Mandeb, devido à constante presença, quase sempre hostil, dos Houthis nessa região estratégica.
A história já mostrou várias vezes que as perdas financeiras alteram todo um cenário geopolítico. O castigo coletivo imposto à população palestina, desde outubro de 2023, está sendo, praticamente, ignorado pela elite do poder global e isso inclui as potências ocidentais e as principais lideranças muçulmanas mundiais. Os palestinos estão esquecidos e desumanizados.
Se acaso as perdas econômicas se intensificarem pela permanência dos conflitos na região, um novo contexto para a paz pode surgir. Os Houthis demonstraram que são resilientes. A ação militar aérea contra o grupo, promovida pelos EUA e aliados, não os fizeram recuar. Estão determinados a reagir contra a guerra em Gaza.
Dessa forma, a perda de conexão de rede, os prejuízos financeiros de uma internet lenta ou ausente (a Starlink, a internet gigante por satélites, de Elon Musk, sozinha ainda não substitui a capacidade dos cabos para atender todos os prejudicados), os efeitos econômicos que isso pode resultar, somados ao aumento dos custos de transporte, pelas dispendiosas e demoradas rotas marítimas ao sul do continente africano, podem promover mudanças de comportamento, em relação às políticas de guerra sangrentas do governo de Israel.
Um antigo ditado popular alega que a ajuda vem de onde menos se espera. Os Houthis e suas ações no Mar Vermelho, quem diria, podem proteger mais os palestinos que todas lideranças ocidentais reunidas. Não surpreende, afinal, “alguma coisa está fora da ordem, da Nova Ordem Mundial”, dizia a canção. É necessário aguardar! Espera-se que não demore tanto.