Primeiro semestre de 1977. Funcionários e professores da UFMG entraram em greve.
Há pouco havíamos iniciado o 2º período do curso de medicina. Furor acadêmico no mais alto grau, frustrado pela paralisação que não tinha a menor pinta de ser suspensa. Mochila nas costas e pé na estrada para São Francisco no litoral do Rio de Janeiro. Lá fomos eu e meu colega Flávio Figueiredo conhecer a Cabana Barros, uma casa adquirida por sua mãe e ainda não habitada.
O encontro com o recinto foi, a princípio, decepcionante. Longe da praia, dois quartos, beliches pré-moldadas e caixa d’água para encher com bomba hidráulica de acionamento a base de feijão e músculos. Nada que estudantes não superem com humor e entusiasmo de calouros em greve! Casa limpa, caixa d’água cheia, faltava rango! Minha audácia culinária pedia um bobó de camarão. Precisávamos do ingrediente, a estrela do prato. Após uma corrida na praia, passamos na porta de um boteco de praia com a tentadora placa: “Camarão ceco”. Português errado, mas ingrediente perfeito para a moqueca e principalmente para nosso bolso de estudante.
Pedimos um pacote de 500 gramas de camarão e uma cerveja para justificar a corrida na praia em sol escaldante. Entretanto, antes que nos apossássemos da iguaria, uma mão alienígena adentrou nosso pacote de camarão recém-pesado. Um indivíduo distraído e extremamente falante achou que se tratasse de amostra grátis para degustação. Sem titubear, também “distraídos”, nos servimos da cerveja dele e perguntamos: “Tá bom o camarão?!”. Quando ele percebeu a mancada, se desculpou e ofereceu mais um pouco de cerveja em nosso copo pela metade. Sem saber quem éramos, nos convidou para sentar na sua mesa, onde um casal o esperava.
Pela simpatia acolhedora do indivíduo, aceitamos o convite e nos juntamos a eles.
Após boas risadas nos apresentamos. Ele era o professor José Pelegrino, pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. Certamente, um dos maiores experts do mundo em esquistossomose, doença que ainda hoje mata milhares de pessoas no Brasil e no mundo. A moça que o acompanhava era a professora Dra. Maria Fernanda Furtado de Lima, brilhante epidemiologista do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da UFMG. O outro indivíduo era o Anselmo, primo do Pelegrino e seu motorista naquela viagem. O destino fez com que, ao matarmos uma greve da universidade, nos encontrássemos naquele local e situação improvável. Ao nos identificarmos como estudantes de medicina da UFMG, ele imediatamente nos perguntou sobre o que sabíamos sobre esquistossomose. Falei exatamente o que eu havia estudado para o vestibular.
Enquanto eu falava, ele prestava atenção como se não soubesse nada sobre o assunto. Ao final, aplaudiu e me fez um convite desafiador: “Você não quer fazer uma palestra para a população dessa cidade, exatamente igual ao que você acabou de me falar?”, disse. “Quando?!”, perguntei surpreso. “Hoje à noite, no cinema da cidade”, respondeu. Diante de uma proposta tão inusitada, quis saber o motivo do convite.
Dr. Pelegrino havia ganho a concessão de uma ilha da marinha para criar macacos Rhesus, os quais usava no modelo animal de seus estudos. Diante do temor da população quanto a possibilidade de doenças serem levadas para o município, ele teria que fazer uma ação educativa para esclarecer o que pretendia. Minha explicação sobre a doença era suficiente e adequada ao público com o qual ele se encontraria naquela noite. Se ele falasse do jeito dele, certamente não entenderiam nada sobre o assunto.
Aceitei o convite e fiz a palestra no cinema da cidade. A primeira da minha vida para um público tão grande! Ele adorou a apresentação e principalmente a audácia. Na sequência, me deu seu contato e ofereceu a possibilidade de uma bolsa de estudos de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), para ser feita no seu departamento, no ICB. Incrédulo, ao retornar para a universidade, Flavio e eu fomos procurá-lo. O Flavio, mais acanhado, desistiu na última hora. Para a surpresa, a receptividade e o entusiasmo com o qual fui recebido foi o mesmo do boteco da praia.
Em resumo, recebi a bolsa do CNPq, a qual mantive durante todo o meu curso de medicina. Ao longo desse período conheci brilhantes cientistas, infectologistas, clínicos, nefrologistas e imunologistas, com os quais trabalhei e colaborei em suas teses de mestrado e doutorado. Esses mesmos profissionais se transformaram em professores, preceptores e amigos, influenciando de forma definitiva minha formação, carreira e vida.
Sou extremamente grato a todos os professores que tive ao longo da minha jornada. Da Dona Zifinha Sendon, da Escola Infantil Santa Terezinha, e professores do Grupo Escolar Dom José Gaspar de Ibiá, que me alfabetizaram, aos professores Paulo Marcos Zech Coelho, Professora Maria Fernanda, Professor Dirceu Greco e Professor Edward Tonelli da UFMG, os quais me acolheram após a morte do Professor Pelegrino.
Mas, a ele, devo a energia e vibração pela medicina e principalmente pela ciência. Onde quer que ele esteja, estaremos sempre juntos, rindo e desafiando o impossível, como ele sempre ensinou.
E tudo começou com uma mão estranha e improvável num pacote de “camarão ceco”!