As últimas eleições têm mostrado que há um discurso religioso que permeia a política e o debate público; e que simplesmente desprezá-lo pode ser um equívoco. É preciso lembrar que muitos dos nossos valores seculares têm raízes nas tradições religiosas e que ignorar tal influência pode empobrecer o debate público e deixar de fora vozes e perspectivas que, embora originadas na fé, acabam tocando em questões fundamentais para todos nós. Valores como a dignidade humana, a justiça e a solidariedade foram sustentadas inicialmente por religiosos, e só posteriormente incorporados pela ciência.
A modernidade, com sua crença quase absoluta na razão, deixou de fora os aspectos religiosos do debate público. Para os modernos, a ciência era a única fonte de conhecimento confiável, o que fez com que o discurso religioso fosse relegado ao âmbito privado. Os argumentos metafísicos e religiosos foram desprezados em nome da valorização da objetividade científica, que seria o único caminho para a verdade.
Com o surgimento da chamada pós-modernidade, a capacidade da ciência para nos oferecer respostas sobre questões morais complexas foi questionada. A pós-modernidade colocou em dúvida todas as “grandes narrativas” e os “sistemas fechados de pensamento”, incluindo aí a crença de que a razão científica poderia nos oferecer todas as respostas. Para muitos pensadores, a pós-modernidade “desencantou” o mundo, e em seu lugar deixou um vazio que a ciência não foi capaz de preencher.
Para o filósofo Jurgen Habermas, é exatamente nesse cenário pós-moderno que a ciência e a religião devem dialogar. O autor não propõe que a religião deva substituir a ciência no debate público, mas que seja uma parceira capaz de oferecer suporte valorativo para questões éticas complexas. Para Habermas, valores e convicções religiosas podem enriquecer o debate público em áreas nas quais a ciência não consegue oferecer respostas éticas claras.
Para alcançar o intento, sugere Habermas, as contribuições religiosas teriam que passar por uma espécie de “tradução cooperativa”. Isso significa que, embora as tradições religiosas tenham muito a oferecer, é preciso que essas ideias sejam “traduzidas” em uma linguagem acessível a todos os cidadãos, independentemente de sua filiação religiosa ou não. Nesse contexto, os valores religiosos devem ser apresentados livres do dogmatismo, para que possam ser discutidos e avaliados por todos, dentro de um contexto dialógico e democrático.
O autor usa o exemplo da manipulação genética para defender a necessária relação que deve haver entre as tradições religiosa e científica. Para Habermas, a ciência avançou a ponto de permitir a criação de sujeitos humanos não-humanos, como os clones. Tais situações levantam questões sobre os limites da intervenção humana, sobre o significado de dignidade humana e sobre o impacto de tais manipulações para as futuras gerações.
Tais questionamentos, segundo o autor, não encontram respostas na própria ciência, que precisa ser auxiliada pelo suporte moral que as tradições religiosas podem oferecer.
Para que isto aconteça, segundo o autor, ciência e religião devem se abrir para o diálogo, propiciando o surgimento de uma sociedade na qual as diferenças sejam respeitadas e as decisões sobre o futuro da humanidade sejam tomadas com base em um entendimento compartilhado sobre o real significado de valores como liberdade, justiça e dignidade, por exemplo. Em tal sociedade, a ciência revelaria os fatos e a religião auxiliaria para construção de balizas éticas, de modo que o debate público seria enriquecido, ajudando na construção de perspectivas mais justas e pluralistas.