Nas redes sociais, a cultura do “cancelamento” se tornou a nova palavra de ordem. O termo é usado para designar uma espécie de boicote coletivo contra indivíduos que cometeram erros ou transgressões morais, e que são julgados sumariamente. Pode ser uma declaração infeliz, ou a captação de uma atitude controversa que, em questão de algumas horas, a pessoa já está no topo dos assuntos mais comentados da internet, muitas vezes, tendo sua vida exposta de um modo injustificado. Às vezes acontecem erros difíceis de serem compreendidos, mas o cancelamento não ocorre apenas quando o erro é profundo, ele pode ser em virtude até mesmo de situações relativamente comuns na vida de pessoas que se assumem verdadeiramente humanas.
Como seres finitos, nosso conhecimento também é finito, inclusive sobre os fatos que verdadeiramente rondam as razões ou circunstâncias que levaram outras pessoas a agirem do modo como agiram. Muitas vezes o que se tem é uma foto, um vídeo recortado ou uma captação parcial de áudio e, imediatamente, já se define que aquilo diz respeito à totalidade da situação. Mas será que esse julgamento, apressado e severo, retrata nossa conduta moral genuína ou ele apenas esconde aspectos de nós mesmos que nós preferimos ignorar?
Talvez, quando julgamos os outros, apressada e severamente, estejamos, na verdade, projetando neles aspectos da nossa personalidade que não suportaríamos enfrentar. Não há um único ser humano que não tenha também suas sombras, e como nos lembra o filósofo Jean-Paul Sartre, somos uma mistura de simbolismo e carne, de ideias nobres e impulsos mais baixos. Mas é exatamente essa complexidade que nos faz humanos! A história já mostrou que, às vezes, por trás de grandes moralistas estão pessoas que não conseguem seguir os próprios padrões morais que impõem aos outros.
Quando, sem pensar muito bem, aderimos ao julgamento público que o tribunal da internet se transformou, estamos reforçando uma visão simplista de mundo, onde categorizamos as pessoas entre as “boas” e as “más”, sem qualquer alternativa entre elas. Essa visão dificulta a nossa possibilidade de compreensão sobre quem realmente somos e quem verdadeiramente são os outros. Somos todos, potencialmente, seres capazes de feitos grandiosos e, ao mesmo tempo, do mais repugnante ato moral.
Não estou defendendo que todos nós sejamos capazes de cometer a mesma espécie ou grau de erro, em absoluto. No entanto, ao julgar, severa e apressadamente, é possível que nós estejamos nos colocando em uma espécie de superioridade moral, que tende a mascarar, ainda que temporariamente, nossas próprias angústias e inseguranças. Ao apontarmos o dedo para o outro, corremos o risco de estarmos escondendo sombras em nós, que preferiríamos ver ocultas.
Voltando a Sartre, ele defendia que somos radicalmente livres, mas essa liberdade traz consigo a responsabilidade de assumirmos tudo o que realmente somos, inclusive no que diz respeito aos nossos erros e às nossas falhas, ainda que isso seja trabalhoso e às vezes doa. Mas quando isso acontece, o peso do nosso olhar sobre o erro dos outros tende a diminuir. Se torna mais fácil nos colocarmos verdadeiramente no lugar daquele que errou, daquele que teve a vida íntima devastada e exposta, muitas vezes, sem ter cometido crime algum, mas por um desvio moral, alguns deles, já cometidos por nós mesmos.
Ao criarmos uma narrativa simplista, na qual deixamos nossas falhas de lado e dividimos o mundo entre vilões e mocinhos, acabamos nos tornando reféns de um moralismo superficial, que pouco demonstra o que de fato é a natureza humana. Na medida em que aprendemos a lidar com as nossas próprias falhas, diminuímos a necessidade de julgar e condenar os outros, o que nos permite transcender o falso moralismo e criarmos uma convivência mais justa e compassiva. Quem sabe assim, na próxima vez que nos sentirmos tentados a cancelar alguém, coloquemos o diálogo e a reflexão, sobre o outro e sobre nós mesmos, no lugar do julgamento apressado e da exposição destrutiva.